sábado, 10 de setembro de 2011

Leituras. Parte XVIII. António C. Franco: Memória de Inês de Castro. O Besouro. «O perfil de D. Constança Manuel viu-se, depois da morte do filho do infante D. João, mais melancólico e mais riste. O rubor ainda lhe subia ao rosto e o seu ânimo alimentava-se ainda dos devaneios futuros com o rei»

Cortesia de confinshistoria

O Besouro
«Foi de madrugada, ao pedir um copo de água, que um camareiro do próprio rei o envenenou. Ao meio-dia o seu corpo estava coberto de protuberâncias esponjosas, em que se destacavam nódoas escuras e amareladas. Abril é fértil nessas cintilações venenosas e os próprios animais, descuidados às vezes, sofrem indigestões fatais ao pé dos cursos de água. Abril é Novembro virado do avesso, os pólens também são venenos. Os pastores, com a sua índole nómada e sonhadora, tocam então, desolados, notas dos seus pífaros, que são como uma incineração primitiva do corpo, humano ou animal, um rito funerário, que tanto diz respeito aos homens como aos animais, como até às próprias plantas.

O corpo de João, «o Torto», foi encontrado, poucas horas depois, quando o Sol estava no zénite, nas bermas solitárias da estrada que vai para Tordesilhas, por um grupo de zagais pouco menos que pícaro.
Cortesia de otecaescolar

A união conjugal entre Afonso XI e Constança Manuel apareceu, desde aí, aos olhos do rei, como perfeitamente desnecessária e ridícula. Não houve nesta jogada propriamente premeditação, mas a morte do sobrinho de Sancho IV veio tornar pouco eficiente a união da coroa com a casa de João Manuel. A quebra dum elo significa aqui que toda a corrente se desorganiza. Tomava-se por isso desnecessária qualquer aliança com Manuel, que era agora um elo isolado duma corrente enfraquecida. O casamento era tratado como um assunto diplomático, como uma escolha necessária de alianças e conluios, mas nunca como uma questão de amor. Era assim que Afonso pensava nele.

O perfil de D. Constança Manuel viu-se, depois da morte do filho do infante D. João, mais melancólico e mais riste. O rubor ainda lhe subia ao rosto e o seu ânimo alimentava-se ainda dos devaneios futuros com o rei. Encostava--se às paredes altas do seu quarto e olhava os espaldares da sua cama completamente absorvida por pensamentos íntimos, que nada ainda pressentiam de mau. O amor era uma pequena brasa aquecida, mais aquecida pelo sol da melancolia do que propriamente pela braseira do desejo. A morte tinha vindo já alisar os mais altos ápices do amor, dando-lhes uma memória, mas não tinha ainda esterilizado essa terra. O sentimento continuava a dar as suas flores, miúdas e engraçadas.


Cortesia de cecypoemas e vivadompedroedonainesdecastrowordpress.com

Não houve, da parte de Afonso de Castela, qualquer repulsa física ou espiritual por Constança, antes uma renúncia, feita quase em termos políticos, e que teve mesmo algo de doloroso, pois ele próprio estava desde há meses consideravelmente mentalizado para essa união. Tratava Constança como se tratava una ave frágil e bela, dirigindo-lhe raramente a palavra, mas não abdicando nunca de a ver durante a tarde. A tarde, na cidade de Touro, é, quer de Inverno ou de Verão, um lugar de sonolência e contemplação, em que as mulheres enchem o colo de lã para cardar e os homens se deixam ficar a olhar as oliveiras próximas do rio. As mulheres cardam e depois, num segredo, fitam mais o dito que se acerca do que o olhar que se afasta. A inevitabilidade duma nova aliança matrimonial fez que João Manuel partisse apressadamente de Touro, depois de saber, por alguns conselheiros, que o rei se inclinava a falar com Portugal para tratar do casamento, reatando assim uma política que tinha o seu mais directo antecedente no casamento da filha de D. Dinis com o rei Fernando IV, pai de Afonso XI, que era afinal filho duma infanta portuguesa. Essa procura, algo exasperada, de alianças matrimoniais com Portugal pressupunha não tanto uma política de anexação, impensável em situações normais, mas pelo menos uma esperança de unificação futura, caso se desse, dum lado ou de outro, uma crise dinástica de sucessão (20)». In António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, Publicações Europa-América, 1990, edição nº 103310, Depósito Legal nº 33344/90.

Cortesia de PE América/JDACT