quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Memórias da Grande Guerra. Jaime Cortesão. «’Vem tarde este livro’, mas cedo todavia para a visão inteira e larga da nossa luta. Também para a justiça dos homens e para a comovida curiosidade com que tu, ó leitor, o deverás folhear, ‘eu sei que é infinitamente cedo ainda’»

Jaime Cortesão em França
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«Este livro vem tarde.
A guerra e as prisões (a guerra sempre) não me deixaram forças para fazê-lo antes. A própria violência da guerra atingiu esta pequena obra na sua primeira forma. Durante as horas serenas ou terríveis de França eu o tinha apontado com a pena e com o lápis, escrevendo e desenhando. Perderam-se esses apontamentos na batalha do Lys, ficando-me apenas alguns poucos que enviara para Portugal. Foi, com eles e com restos de cartas e recordações que eu reconstituí o perdido, e rascunhei, de novo as minhas memórias. Também porque elas abrangem as muitas modalidades da nossa guerra cujo teatro se estendeu desde a própria pátria à África e à França, as variações do tempo nessa larga curva não me consentiam que o escrevesse, como ele hoje vai, com esse pouco de verdade, que ainda assim por vezes tão grande dor custa a dizer-se. Direi apenas o que vi e ouvi. Sofri demais para poder mentir. O sentido da verdade e a coragem de a dizer são as maiores conquistas que esta guerra deu aos que nela mergulharam a fundo. Por isso me rio tristemente tanto dos que, sem terem posto o pé numa trincheira, querem contar a guerra, como daqueles que tendo lá estado venham para público, penteados e lustrosos, na sua fatiota de heróis, poisar para a galeria. O que todos, todos puderam sentir nesta guerra foi a sua infinita capacidade de misérias. Muitos, em nome de altos princípios, deram-se com heroísmo sereno às mais dolorosas provações. E alguns, quando colocados na contingência dos deveres terríveis, foram sublimes. Tiveram nos dias cinzentos horas de claridade divina. Mas só assim, amassada com oiro e lama, a verdade é humana, é inteira e grandiosa. O homem, o mais alto, só o foi, só o é em relação à sua e à baixeza dos outros. Este livro vem tarde, mas ainda vem a tempo. Lentamente, a história da grande guerra há-de escrever-se, povo a povo, tomo a tomo. Quanto a nós, queremos apenas traçar-lhe uma das páginas. As obras definitivas na História ou na Arte virão mais tarde, muito mais tarde. Os grandes homens como os grandes acontecimentos só podem ser vistos e admirados a distância.
Uma estrela, vista de perto (dado que a pequena, distância pudesse olhar-se) seria um confuso vendaval de fogo e lava destruidora. Vistas à distância imensa a que nós as olhamos cabem às centenas no mesmo fitar de olhos e espalham nas noites sem lua uma doce claridade. A distância, a distância no espaço e no tempo, é a condição indispensável para que os astros, os homens e os factos tenham beleza. Que os Tácitos e os Homeros de hoje, se é que os temos, poisem o cálamo egrégio, deslacem as cordas da lira canora. É cedo. Mas quando o estatuário das obras definitivas e imorredouras largar, de escopro na mão, para jogar ao mármore o primeiro talho, já então ele tomou para o arranjo da sua estátua qualquer linha fugaz das que animam este gesso efémero. Eles virão e hão-de colher um pouco destas páginas, onde há lágrimas, risos, misérias, drama e epopeia.
Há quem pretenda, eu sei, que esta, a nossa guerra, não dá um canto de epopeia. Que é mero assunto para relatos frustes, coisas de somenos, frioleiras. Felizmente os que assim falam não definem a nossa guerra mas o seu temperamento, marcado pela faculdade estreita de ver o riso e a espuma das coisas. Nem por isso a nossa guerra, como as outras, deixa de se repassar de sofrimento e de epopeia. Para isso bastava a batalha do Lys e a arrancada épica daqueles homens, que, vencendo a inércia e a descrença dos grandes chefes, conseguem, através de tudo, marchar para a frente, onde se ganhava a vitória. Vem tarde este livro, mas cedo todavia para a visão inteira e larga da nossa luta. Também para a justiça dos homens e para a comovida curiosidade com que tu, ó leitor, o deverás folhear, eu sei que é infinitamente cedo ainda». In Jaime Cortesão, Memórias da Grande Guerra, Obras Completas, Portugália Editora, Lisboa, 1969.

Cortesia PortugáliaE./JDACT