quarta-feira, 5 de novembro de 2014

O Mundo Perdido de Calaári. Laurens van der Post. «Na verdade, creio que a primeira pergunta objectiva que jamais fiz à vida foi esta: “Quem era realmente, o Bochimane?”. Fi-la a gente de todas as raças e cores que podia ter tido contacto com ele, até o ponto de deverem ter achado difícil suportar a impertinência duma criança»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Povo Desaparecido
«Esta é a história duma viagem através duma grande região, desértica, em busca de algum puro sobrevivente desse povo primitivo, único e quase desaparecido do meu país natal, os Bochimanes de África. Essa viagem realizou-se, de facto, há apenas um ano; num sentido mais profundo, porém, começou muito antes disso. Na verdade, tudo isto remonta a um tempo tão recuado, que é impossível determinar quando, realmente, principiou. O que sei ao certo é que, logo que tive consciência de mim próprio como criança, a minha imaginação entrou, como a mão entra na luva, numa profunda preocupação com o pequeno Bochimane e o seu terrível destino. Nasci perto do Rio Grande, no coração da região que fora, durante milhares de anos, o grande país Bochimane. O próprio Bochimane, como entidade coerente, tinha há muito desaparecido. Porém, desde o meu nascimento, eu fora rodeado por tantos fragmentos vivos da sua raça e da sua cultura, que o sentia extremamente perto. Constantemente o encontrava nos lábios dos homens vivos. Ao lado da lareira, nas noites frias de Inverno, na herdade de minha mãe, a herdade de Wol…, a montanha dos lobos (como os meus compatriotas chamavam às grandes hienas listradas) ou em roda da fogueira do acampamento, enquanto o uivo lamentoso dos chacais arrancava um balido apreensivo a uma ovelha recém-parida do rebanho próximo e a tarambola nocturna gemia por sobre a planície negra como a sereia dum navio, o Bochimane surgia, vivo, no centro de alguma forte reminiscência de pioneiro: um Bochimane alegre, intrépido, malicioso, desconcertante e eternamente impenitente e provocador. Embora desaparecido da terra, ainda perseguia a vida e a realidade no sangue misto dos povos de cor, tão subtilmente como perseguira a abundante caça africana. Estava presente nos olhos duma das primeiras mulheres que se ocuparam de mim, cujo brilho fora tirado da primeira luz de algum dia africano perdido nos séculos. Aqui, um toque de sangue bochimane daria a um rosto bantu, sem ele puro, um ar mongólico; ali, tingiria a pele retinta dum africano central dum amarelado de damasco, ou estalaria, como faísca eléctrica, na explosão onomatopaica que o Bochimane tinha imposto à língua sonora do invasor.
À medida que crescia, mais eu lamentava ter chegado demasiado tarde para o conhecer em carne e osso. Durante muitos anos, não pude aceitar que a porta se tivesse para sempre fechado sobre o Bochimane. E continuei a procurar notícias e informações a seu respeito, como se a preparar-me para o dia em que a porta se abrisse e ele reaparecesse no meio de nós. Na verdade, creio que a primeira pergunta objectiva que jamais fiz à vida foi esta: Quem era realmente, o Bochimane?. Fi-la a gente de todas as raças e cores que podia ter tido contacto com ele, até o ponto de muitos corações pacientes deverem ter achado difícil suportar a incompreendida impertinência duma criança. Disseram-me muita coisa. Mas o que me disseram só serviu para aumentar a minha sede por mais. Disseram-me que era um homem pequeno, sem ser anão ou pigmeu, um homem com cerca de um metro cinquenta de altura. Era robusto, bem constituído. Tinha os ombros largos, mas as mãos e os pés eram extraordinariamente pequenos e delicadamente modelados. O mais velho dos nossos empregados basutos disse-me que bastava que alguém visse uma vez na areia as suas pegadas pequenas e precisas para nunca mais as esquecer. Tinha os tornozelos delgados como um cavalo de corrida, as pernas flexíveis, os músculos lassos e corria como o vento, velozmente e por muito tempo. De facto, quando se deslocava, quase nunca andava, no sentido próprio do termo, mas antes, como a gazela ou o cão selvagem, corria num trote fácil. Nunca existira ninguém que corresse como ele sobre o veldt e os seixos, e os ossos de muito basuto e koranna solitário branqueavam ao sol para provar como fora em vão que ele tentara ultrapassá-lo. Tinha a pele solta, uma pele que muito cedo se enrugava e cobria de pregas. Quando ria, o que fazia facilmente, a cara cobria-se-lhe dum complicado desenho de pequenas rugas e sulcos». In Laurens van der Post, The lost world of the Kalahari, O Mundo Perdido de Calaári, edição Livros do Brasil, Lisboa.

Cortesia de LdoBrasil/JDACT