quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Os Poemas da Minha Vida. Maria Alzira Seixo. «O poema é também a fala directa de uma impossibilidade comum, a da libertação do país da opressão e do silêncio forçado, estéril, durante esses anos de ditadura. Prolongamento de nós pelo amor e alimento da esperança»

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Notícias do bloqueio
«Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.

Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos,
tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos, contrabando, aos teus cabelos.

Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.

Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...


Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.

Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.

Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.

Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.

Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas e granadas
e enquanto a água e os víveres escasseiam
aumenta a raiva
e a esperança reproduz-se».
Poema de Egito Gonçalves, Matosinhos, 1920-2001


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