terça-feira, 12 de abril de 2016

A Harmonia do Quotidiano. A Primavera. «A poesia não é feita por um nem por todos. A poesia está na aspereza das coisas contra nós, tão mais nítidas ao nosso olhar isento quanto mais doem no coração silencioso»

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Tejo que levas as águas
«Tejo que levas as águas
correndo de par em par
lava a cidade de mágoas
leva as mágoas para o mar

Lava-a de crimes e espantos
de roubos fomes terror
lava a cidade de quantos
do ódio fingem amor

Leva nas águas as grades
de aço e silêncio forjadas
deixa soltar-se a verdade
das bocas amordaçadas

Lava bancos e empresas
dos comedores de dinheiro
que dos salários de tristeza
arrecadam lucro inteiro

Lava palácios vivendas
casebres bairros da lata
lava negócios e rendas
que a uns farta a outros mata

Lava avenidas de vícios
vielas de amores venais
lava albergues e hospícios
cadeias e hospitais

Afoga empenhos favores
vãs glórias ocas palmas
leva o poder de uns senhores
que compram corpos e almas

Das camas de amor comprado
desata abraços de lodo
rostos corpos destroçados
lava-os com sal e iodo»


O senhor gerente
«Para falar ao gerente
em nome de todos nós
se algum de nós o procura
assoma logo pela frente
um homem de cara dura
a dizer em alta voz:
Não está o senhor gerente.

Nunca está presente
Anda sempre ausente
Bem longe da gente
O senhor gerente.

Todos os dias à gente
repetem que ele saiu
e só amanhã virá.
Assim nenhum de nós viu
jamais o senhor gerente
mas ordens que ele dá
essas sente-as a gente.

Mesmo quando ausente
Está sempre presente
A mandar na gente
O senhor gerente.

Lá no escritório o gerente
sem dar ouvidos à gente
e nós cá nas oficinas.
O esforço da nossa lida
guarda-o com unhas ferinas
somos a fonte da vida
o dinheiro é para o gerente.

Nunca está presente
Anda sempre ausente
Bem longe da gente
O senhor gerente.

Eis então a causa assente
de fingir-se sempre ausente
dos rogos da nossa gente.
Mas ouça senhor gerente
se mantém a causa assente
de fingir-se sempre ausente
que fará então a gente?

Já que não consente
Vai ficar assente
Passa a ser a gente
O novo gerente».
Poemas de Manuel da Fonseca, in “Que nunca mais

ISBN 978-989-619-124-5

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