quinta-feira, 21 de abril de 2016

Escalas do Levante. Amin Maalouf. «O médico conhecia a paciente. Tinha-se encontrado com ela seis meses antes, a uma luz muito diferente. Tendo vindo tratar uma criada atacada de histeria, ouvira a princesa ao piano. Tocava uma ária vienense, e ele ficara a escutá-la…»

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«(…) Tinha-se encerrado no seu quarto. Sei que ninguém quer já obedecer-me, mas se alguém se lembra de penetrar aqui, estrangulo-o com as minhas próprias mãos! Tinham-no portanto deixado entregue a si mesmo toda a noite, e depois toda a manhã. Até à hora do almoço. Bateram então à sua porta. Ele nem sequer respondeu. Isso provocou inquietação; mas quem ousaria desafiar as suas ordens? Os criados conferenciaram. Só uma pessoa no mundo podia desobedecer-lhe sem incorrer na sua cólera. A filha, a sua filha bem-amada, Iffett. Estavam ligados por uma profunda afeição, ele não lhe recusava nada. Ela tinha professores de piano, de canto, de francês, de alemão. Ousava mesmo vestir-se à europeia na presença dele, com vestidos que trazia de Viena ou de Paris. Só ela podia cruzar sem risco a porta do soberano caído. Obtêm a autorização das novas autoridades, e chamam-na. Ela tenta primeiro rodar suavemente o puxador da porta. Mas a porta não se abre. Pede aos que a acompanham que se afastem, e chama: pai, sou eu, Iffett. Estou sozinha. Não há resposta. Toda a tremer, ordena aos guardas que arrombem a porta, jurando-lhes que assumirá sozinha toda a responsabilidade. Dois ombros vigorosos entram em acção. A porta cede. Os dois latagões fogem sem sequer lançarem uma olhadela para a sala. A filha entra. Volta a chamar. Pai! Dá dois passos. É então que ela solta esse grito que vai ressoar no quarto, no corredor, nos vestíbulos, repercutir-se nas ruas de Istambul, depois em todo o Império; e também, para lá do Império, nas chancelarias das Potências. O soberano caído tinha as veias cortadas e o pescoço enegrecido. As suas roupas haviam-lhe já bebido o sangue.
Um suicídio? Talvez. Mas talvez também um assassínio. Porque os assassinos podiam muito bem ter passado pelos jardins. Nunca se soube a verdade. De qualquer maneira, a questão não tem já importância, salvo para alguns historiadores... Iffett continuava ali, estática no seu horror; ao seu grito seguira-se uma espécie de arquejo. Muitos anos mais tarde, ainda se podia adivinhar esse horror nos seus olhos. Passadas as primeiras semanas de luto, como ela vagueasse ainda pelos corredores, com o mesmo olhar, o mesmo arquejo, tiveram que render-se à evidência: não se tratava já da aflição normal de quem lamenta um ser querido; Iffet, a filha preferida, a menina mimada, tão jovial e garrida, acabava de perder a razão. Talvez para sempre. A mãe não teve outro remédio senão recorrer ao velho doutor Ketabdar. Descendente de uma família de eruditos originária da Pérsia, era ele que tratava, nas grandes casas de Istambul, aqueles que davam sinais de alienação; recorrer a ele era já uma confissão de infortúnio.
O médico conhecia a paciente. Tinha-se encontrado com ela seis meses antes, a uma luz muito diferente. Tendo vindo tratar uma criada atacada de histeria, ouvira a princesa ao piano. Tocava uma ária vienense, e ele ficara a escutá-la, de pé, junto da porta. Quando ela parou, dirigira-lhe algumas palavras de encorajamento, em francês. Ela respondera-lhe, toda sorridente. Trocaram algumas frases, e o velho partira cheio de satisfação. Nunca esquecera aquele encontro, aquela música, aquelas mãos lisas, aquele rosto, aquela voz. E quando entrou de novo naquele dia na sala onde estava o piano, e viu a mesma rapariga caminhar de um lado para o outro numa grande agitação, a ouviu emitir roncos de demente, com os olhos alucinados, os dedos curvos, não pôde reter as lágrimas. A mãe de Iffett notou-o, e desfez-se em soluços. Ele censurara-se por isso, e pedira-lhe perdão; devia reconfortar as famílias dos seus pacientes, não alarmá-las ainda mais.
E se eu a levasse para longe de Istambul? perguntara a mãe. Para Montreux, por exemplo... Infelizmente, não, declarara o velho, desolado, uma viagem não resolveria nada. Embora fosse certamente necessário mudar-lhe as ideias, afastá-la de tudo o que pudesse recordar-lhe o drama, isso não era bastante. No estado em que estava, devia ser permanentemente acompanhada por pessoas qualificadas. A mãe cerrara os punhos contra o peito. Nunca deixarei encerrar a minha filha num asilo! Antes morrer! O médico prometeu reflectir sobre uma melhor solução». In Amin Maalouf, Escalas do Levante, Difel 82, Algés, 1997, ISBN 972-290-355-1.

Cortesia de Difel/JDACT