domingo, 3 de abril de 2016

Noites de Jasmim. Júlia Gregson. «Quando ela entrou na enfermaria naquela noite, o que o impressionou mais foi o facto de parecer tão jovem: jovem, vivaz e esperançosa. Da cama, ele absorveu todos os pormenores dela»

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«(…) É britânico. Onde aprendeu a pilotar? Incline a cabeça para este lado, por favor. O nariz arrebitado agigantava-se sobre ele. Em Cambridge. No University Air Squadron. Ah, o meu pai também andou lá. Ouvi dizer que é divertido. Sim. Kilverton falou mais um pouco acerca de corpúsculos, tónus muscular e da juventude ainda estar do lado dele. Voltou a falar na sorte que Dom tivera. Em breve, terá a sua cara antiga e o seu sorriso antigo de volta. Como se um sorriso fosse uma coisa que se pudesse remendar. Enquanto o escutava, Dom teve de novo aquela sensação horrorosa de flutuar por cima de si próprio, de ver rostos bondosos lá em baixo e não ser capaz de os alcançar. Desde o acidente, uma pessoa nova instalara-se dentro do rosto antigo e do sorriso antigo. Um eu reconstituído que fumava e comia, que brincava e ainda era capaz de dizer piadas cínicas, mas que se sentia essencialmente morto. Na semana passada, encorajado pelos médicos a dar a primeira volta na sua moto, sentara-se na beira relvada do pub Mucky Duck, no que devia ser um dia muito especial, e ficara a olhar para a mão que rodeava o copo de cerveja como se pertencesse a outra pessoa.
Durante as primeiras semanas no hospital, agora uma mancha indistinta de cateteres intravenosos, viagens de ambulância e banhos de ácido, o seu único propósito na vida havia sido o de não se tornar um embaraço para os outros ao desatar aos soluços ou aos gritos. Inicialmente cego, conseguira lançar um sarcástico és bonita?, à enfermeira que o acompanhara na ambulância que o levou para longe da meda de feno fumegante. Mais tarde, nas enfermarias, fizera um acordo consigo mesmo: não iria negar a dor física, que era constante, aguda, e tão má, por vezes, que chegava a ser quase engraçada, mas emocionalmente, não iria admitir absolutamente nada. Se alguém lhe perguntasse como é que ele estava, estava bem. Só na calma relativa. da noite, nos momentos lúcidos quando emergia da névoa da morfina, é que ele pensava na natureza da dor. Para que servia? Como deveríamos lidar com ela? por que motivo fora ele salvo e os outros tinham morrido? E só meses depois, quando as mãos já estavam suficientemente curadas, começou a escrever no diário que a mãe lhe tinha enviado. Páginas e páginas de coisas sobre Jacko e Cowbridge, ambos mortos naquele dia. Uma carta para a noiva de Jacko, Jill, por enviar. Cartas para os seus próprios pais, idem, avisando-os de que quando estivesse melhor, estava decidido a pilotar de novo. E depois apareceu a rapariga. Quando ela entrou na enfermaria naquela noite, o que o impressionou mais foi o facto de parecer tão jovem: jovem, vivaz e esperançosa. Da cama, ele absorveu todos os pormenores dela». In Júlia Gregson, Noites de Jasmim, Edições ASA, tradução de Ana Pereira, 2012, ISBN 978-989-231-964-3.

Cortesia ASA/JDACT