domingo, 3 de abril de 2016

Cartas ao cardeal. Fátima. Tomaz Fonseca. «Também não podíamos dizer: a imaginação ao poder. Mas era sempre uma imaginação antifascista para servir a paz e a democracia»

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«(…) Para demonstrar o 1.º ponto, bastariam as queixas formuladas em jornais, boletins, circulares e relatórios, que de contínuo são levadas junto das estações oficiais, a começar nos bispos e a findar nos curas das aldeias. Como as escolas públicas, também as igrejas, capelas e ermidas, mormente na província, se encontram em estado de ruína, umas, ao abandono, outras, e grande número totalmente esquecidas. Em muitas delas o exercício do culto é mantido quase exclusivamente com as alfaias que a República lhes deixou após a Lei da Separação, tão benigna, afinal, que nem sequer aproveitou, para usos civis, muitos dos templos que os próprios bispos desprezavam como desnecessários. A República preveniu a miséria do clero e deu trabalho, em repartições do Estado, aos que, tendo perdido a fé, não quiseram continuar a exercer actos de culto, que os rebaixariam perante a própria consciência. Para os que já tinham constituido família, procedeu em harmonia com a verdadeira caridade cristã, deste modo salvando da miséria e do opróbrio criaturas sem culpa.
Tem procedido assim a situação actual, unida à Igreja pela Concordata? Todos sabem que não. Pelo contrário: os que despem o hábito e procuram trabalho compatível com a sua cultura são apontados como indesejáveis e banidos de postos ao abrigo das receitas do Estado. E padres há que enlouqueceram, porque os obrigaram a renegar filhos que muito amavam (um deles, conhecido e creio que amigo do jornalista Rocha Martins, vivia, há pouco ainda, nos arredores de Lisboa)! Há terras onde o padre, para poder viver, é obrigado a acumular o serviço de duas ou mais paróquias. E quantas vezes recorre ainda a trabalhos agrícolas?! Outros sei eu que se viram na dura contingência de vender os próprios santos e as alfaias de culto! Culpa de quem? Dos crentes que não pagam, ou do Estado Novo, que os esmaga com impostos?
Hoje, o povo, incluindo o próprio aldeão, na ânsia de garantir aos seus o pão de cada dia, nem tempo encontra para assistir à missa, quanto mais para frequentar os sacramentos! Desligou-se da Igreja, porque o Estado o desligou também daquele nível de vida que conheceu em tempos que não vão longe. Além disso, as populações rurais deixaram de ler, de se congregar em centros de cultura, de ouvir prelecções, de serem despertadas para as coisas do espírito». In Tomaz Fonseca, Fátima, (cartas ao cardeal Cerejeira), [livro Proibido e Censurado], Editora Germinal, Rio de Janeiro, 1955, Arquivo Nacional da Torre do Tombo.

Cortesia de EGerminal/JDACT