sexta-feira, 8 de abril de 2016

Sancho II. Da Deposição à Composição das Fontes Literárias dos séculos XIII e XIV. Herlânder Gonçalves Santos. «… subjacentes à elaboração do seu discurso, que parece ter vindo arrebatar, a Sancho II, a legitimação governativa que outrora a bula “Manifestis Probatum” dera a Afonso Henriques»

Cortesia de wikipedia

A Bula. Grandi non immerito (fr. António Brandão)
«Uma semana após o encerramento do décimo terceiro Concílio Ecuménico, célebre por nele se ter pronunciado a deposição do imperador Frederico II da Alemanha e desobrigado seus vassalos ao juramento de fidelidade, Inocêncio IV expedia, a 24 de Julho de 1245, a bula Grandi non immerito, determinando a entrega da administração do reino português ao irmão de Sancho II, o conde de Bolonha. Da matéria do texto inferimos, em linhas gerais, que esta bula procurou justificar a deposição do monarca pelo caos generalizado em que caíra o reino, circunstanciando-se agravos a igrejas, mosteiros e clérigos, denunciando-se desleixo governativo e enfatizando-se resistências de el-rei Sancho II em acolher as recomendações que a Cúria Romana lhe fizera até então. Deste modo, perante as infrutíferas tentativas de chamar o rei à razão no sentido de se manter a ordem e a justiça, e perante a sua reiterada negligência, o Sumo Pontífice ordena que se receba e acolha Afonso, conde de Bolonha, como governador e curador a fim de se organizar o reino e velar pelo bem do rei. Pela importância que veio assumir este documento no devir dos tempos na historiografia e literatura portuguesas, afigura-se-nos pertinente a sua leitura analítica no sentido de contribuir para o entendimento de alguns pressupostos retóricos e conceptuais, subjacentes à elaboração do seu discurso, que parece ter vindo arrebatar, a Sancho II, a legitimação governativa que outrora a bula Manifestis Probatum dera a Afonso Henriques. A peça retórica começa por dirigir-se nos preceitos habituais aos seus destinatários, neste caso, aos barões e comunidades, concelhos de cidades e castelos, cavaleiros e povo do reino de Portugal, exultando todos os reinos da fé cristã onde, para além do culto e o serviço de Deus, reina a paz, a prosperidade e a tranquilidade por aí se observar a ordem e a justiça: com razão exultamos no Senhor com grande alegria, visto que os reinos da fé cristã estão em situação vantajosa, e a Igreja e outras coisas destinadas ao culto e serviço de Deus, as pessoas eclesiásticas e os outros fiéis, que nesses reinos habitam, se alegram com a tranquilidade da paz; nesses reinos a fé católica de cada vez toma maior vigor, observa-se aí a justiça e a todos se impele ali a audácia de se tornarem culpados.
Em contrapartida, revela ser a mágoa grande quando esses reinos se dividem em discórdias, permitindo-se, pelo afrouxamento da devoção e desprezo da justiça, actos ilícitos e reprováveis aos seus concidadãos: não obstante sentimo-nos imensamente magoados quando esses reinos (...) se dividam em discórdias e, afrouxando o ardor da devoção, esfriam no culto da fé, desprezam a justiça e permitem aos seus habitantes praticar coisas ilícitas. Dos segmentos textuais retirados ao preâmbulo, sobressai a importância da justiça e a relação de causa e efeito entre esta e a ordem. Na sequência desse pressuposto, o nexo inverso é naturalmente apresentado como válido, ou seja, o desprezo de justiça, ou a falta dela, tem como efeito a desordem. É neste enfoque de sentidos de causalidade que se prepara e justifica a sentença seguinte: os reinos em situação próspera devem continuar os modos da sua governação; os que se afundam na desordem devem ser corrigidos. Por isso com grande cuidado e maior empenho achamos dever desejar que os reinos cristãos, que estão em situação próspera, continuem a ser nesse estado governados e aqueles que se vêem a afundar-se perigosamente sejam reformados com louvável renovação. Estava lançada a estratégia retórica em torno do primeiro silogismo argumentativo: os reinos com justiça prosperam e vivem em paz; os que a desprezam, vivem em desordem; os que prosperam, devem continuar; logo, os que vivem em desordem, devem ser reformados. Percebe-se para onde o discurso nos quer direccionar.
Nesse sentido, o texto desenvolve-se focalizando agora o caso particular de Sancho II e o seu reino. Enumeram-se queixas, ultrajes, deliberações régias tidas como ofensivas e vexatórias a igrejas e mosteiros, assim como o rol de advertências, excomunhões e sentenças de interdito, epístolas e provisões eclesiásticas que embora pontualmente cumpridas não repararam as ofensas de acordo com as pretensões da Igreja, por ser teimoso o rei e tardo em fazer justiça: na verdade tendo o nosso caríssimo filho em Cristo, ... tomado conta do governo ... oprimiu desmedidamente as igrejas e mosteiros existentes no reino com variados impostos e vexames tanto por si próprio como por intermédio da sua gente e permitiu de bom grado que por outros fossem vexados conforme à vontade destes. (...) E quanto a resgatar a insolvência dos seus crimes, este rei mostra-se tão indiferente que, no seu reino, os bens, tanto eclesiásticos como de leigos, por fraqueza da justiça popular, são roubados à vista de toda a gente por ladrões, espoliadores, usurpadores, incendiários, profanadores públicos e abomináveis homicidas de padres, como superiores de conventos e outros religiosos, clérigos e seculares e até leigos». In Herlânder Gonçalves Santos, D. Sanco II, Da Deposição à Composição das Fontes Literárias dos séculos XIII e XIV, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Dissertação de mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, orientação de José Carlos Miranda, Porto, 2009.

Cortesia de FLUPorto/JDACT