sexta-feira, 8 de abril de 2016

Senhorinha de Basto. Memórias Literárias da Vida e Milagres de uma Santa Medieval. Pedro V. Boas Tavares. « São pelo menos mais duas as biografias medievais, em latim, de Santa Senhorinha. Foram por Alexandre Herculano insertas no volume "Scriptores", dos "Portugaliae Monumenta Historica"»

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«(…) Na realidade, a lista dos milagres era suficientemente conhecida. E não só a lenda da santa estava há séculos cristalizada, como até formatada por um tipo de divulgação anterior a Jerónimo Baía (embora não se conheça a data de composição da Loa, ela é necessariamente posterior à tomada de hábito do seu autor, em 1643, e certamente já próxima ou posterior ao início dos anos sessenta, momento a partir do qual parece assistir-se à consagração pública de Jerónimo Baía. Recordemos que Afonso VI, de quem foi nomeado pregador, subiu ao poder em 1662, e que as primeiras impressões conhecidas de textos de Baía datam de 1661), de que são exemplo o Flos Sanctorum de frei Diogo Rosário, o Jardim de Portugal, de frei Luís Anjos, a Segunda e Quarta Partes da Monarchia Lusitana, respectivamente de frei Bernardo Brito e frei António Brandão, as crónicas beneditinas de rei António Yepes e de frei Leão de São Tomás, a História Eclesiástica dos Arcebispos de Braga, de Rodrigo Cunha, e o Agiológio Lusitano de Jorge Cardoso.
São pelo menos mais duas as biografias medievais, em latim, de Santa Senhorinha. Foram por Alexandre Herculano insertas no volume Scriptores, dos Portugaliae Monumenta Historica. Dedicaram-lhes cuidada atenção, no recém-transacto século, António Xavier Monteiro, José Mattoso, José Geraldes Freire e Maria Helena Pereira, investigadora que reeditou as duas. Por clareza e comodidade, continuaremos a referi-las com as siglas que lhes apôs o prelado lamecense.
A primeira narração, A (Vita Beatae Senorinae Virginis) é a transcrição dum manuscrito copiado no século XVI ou começos do século seguinte, proveniente do Colégio da Graça, de Coimbra, dos Eremitas Calçados de Santo Agostinho, por sua vez dependendente de um outro que estava na Igreja de Santa Senhorinha de Basto, pois se lê que fora desumpta ex antiquissimo exemplari quod in ipsa Ecclesia Bastensi observatur. Conforme já foi notado, este antiquíssimo exemplar dataria do século XII, pois o seu autor, certamente um monge do vizinho convento beneditino de Refojos, ouvira pessoas que viviam quando se deslocou a Basto o arcebispo Paio Mendes, falecido em 1138.
O escritor anónimo da vida declara ter estado pessoalmente em Basto, onde falou com as testemunhas dalguns factos, recolhendo o relato dos milagres mais recentes de um clérigo chamado Paio, prior da igreja de Santa Senhorinha, que ali vivia, atendendo e escutando os peregrinos que então demandavam o túmulo da monja, rezando, trazendo ofertas, cumprindo promessas e relatando graças e prodígios sobrenaturais, atribuídos à intercessão e poder daquele orago. Assim nos é possível uma reconstituição parcial, ingénua e viva, das práticas e comportamentos religiosos dos romeiros de Santa Senhorinha, já que, como lembra Mário Martins, os hagiógrafos só registavam uma pequena parte do que andava de boca em boca ou do que ficava consignado nos Livros de Milagres. Além da tradição oral de quase dois séculos, José Geraldes Freire parece crer, com palpável fundamento, na possibilidade de em Refojos se ter vindo a fazer a reunião de algum espólio hagiográfico relativo a Senhorinha. Para Geraldes Freire esta vida parece um texto para ser lido, para interpelação de ouvintes e leitores, enquanto o padre Mário Martins, a nosso modesto juízo com mais certeira precisão, vê nela o tom de um sermão de festa, desde o prólogo até ao começar dos milagres sucedidos após a morte da Santa, os quais se acrescentaram pelo mesmo pregador ou por outro qualquer, e têm assim a aparência de um apêndice, corroborativo da santidade e força taumatúrgica de Senhorinha. Mais curto e cronologicamente posterior, o texto da segunda vida, B, (Alia Sanctae Senorinae Vita ex Actis Sanctorum), depende do texto da anterior, e tem a sua origem num manuscrito que existia em Santa Cruz de Coimbra e de que Manuel Faria Sousa forneceu cópia ao primeiro editor, Tamaio Salazar (1652). Daqui passou para os Acta Sanctorum, dos Bolandistas, de onde o foi extrair Herculano. No entender de José Geraldes Freire a redacção actual deverá ter sido retocada ou sofrido mesmo uma reescrita no fim do século XVI ou principio do século XVII, a ajuizar por certos termos gregos latinizados e pelo desenho culto do fraseado, coloração humanística esta já enfatizada a propósito da primeira narração». In Pedro Vilas Boas Tavares, Senhorinha de Basto, Memórias Literárias da Vida e Milagres de uma Santa Medieval, Via Spiritus 10, 2003.

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