sábado, 9 de abril de 2016

A Última Quimera. Ana Miranda. «Tomo-o da maneira mais cuidadosa, formo um berço para ele com a concha de minha mão e o afago, quem sabe com o calor de meu corpo, com o afecto…»

jdact e wikipedia

A plenitude da existência
«(…) Há em mim, não sei por que sortilégio de divindades malvadas, uma tara negativa irremediável para o desempenho de umas tantas funções específicas da ladinagem humana. O que eu encontro dentro de mim é uma coisa sem fundo, uma espécie aberratória de buraco na alma, e uma noite muito grande e muito horrível em que ando, a todo o instante, a topar comigo mesmo, espantado dos ângulos do meu corpo e da pertinácia perseguidora de minha sombra. Um silêncio pesado se instalou na sala, até que Augusto, com a voz embargada, me contou sobre a morte, num parto prematuro, de seu primeiro filho. No dia 2 de fevereiro, às seis horas da tarde, Esther abortara. A criança tinha sete meses incompletos quando nasceu, devia ser alguma coisa tão frágil quanto este filhote de passarinho que vejo moribundo a meus pés aqui no Passeio Público. Tomo-o da maneira mais cuidadosa, formo um berço para ele com a concha de minha mão e o afago, quem sabe com o calor de meu corpo, com o afecto, ele possa não recuperar-se ao menos sentir-se reconfortado no momento de sua morte. Madame Morand dissera que a criança havia morrido no ventre de Esther quatro ou cinco dias antes. Fora uma sorte Esther ter escapado com vida. Madame Genny Morand era uma parteira francesa de muito prestígio e solicitada por todos, tanto que às vezes se tornava necessária a intervenção de um vereador ou de um poderoso comerciante para se obter o seu atendimento. Não era apenas uma curiosa, mas uma mulher com curso científico na França e que tinha enriquecido a faire l'Amérique. Trafegava num carro de luxo guiado por um cocheiro de chapéu alto com roseta na copa. Fiquei imaginando como Augusto tinha conseguido tal madame para atender Esther, com a sua parca comissão de corrector de seguros e o pequeno salário de professor.  Quem teria pago o atendimento? A herança de dona Mocinha fora de mais de cinquenta e oito contos de réis, porém ela devia ter usado grande parte disso comprando o sobrado na Paraíba. A parte de Augusto na venda do engenho, dividida entre sete irmãos, fora gasta nos primeiros meses do seu casamento e da sua chegada ao Rio de Janeiro. Mas isso não importava. Senti meu sangue gelar quando pensei no perigo que rondara Esther. Madame Morand tinha feito muitas recomendações, que Esther estava cumprindo, com a ajuda de tia Alice. Augusto disse que aquela criatura nati-morta teria sido, talvez, uma vigorosa representação típica da morfogénese da sua família. Teria ele visto o cadáver? Como aconteceu tudo isso? Esther gritando no quarto, com madame Morand diante de suas pernas afastadas puxando a criatura, tia Alice segurando a mão da parturiente e secando a sua fronte, rezando um terço, Augusto percorrendo a sala de um a outro lado, as mãos nas costas, tio Bernardino cabisbaixo fumando charuto, a parteira tirava a criança e via que estava morta e Esther deixava de sorrir, percebendo algo de errado, Augusto empalidecia ao ver o rosto contrito de madame Morand ao abrir a porta, corria para o quarto e levantava o lenço ensanguentado que cobria o corpo, numa cestinha de pão. Fui tomado por um horrível sentimento de culpa, como se eu mesmo tivesse morto a criança. Não queria que Esther tivesse um filho, ainda que fosse de Augusto.
Com os dedos trémulos, peguei um fósforo e acendi um cigarro. Augusto percebeu o meu sofrimento e mudou de assunto, falando sobre as aulas particulares que dava, com grande sacrifício, pois ia de casa em casa dos alunos para lecioná-los, numa cansativa perambulação pelas ruas geladas da cidade. Tenho-me sentido bastante incomodado do estômago e dos nervos, disse. Mas é bem provável que a outra face brilhante da vida venha ocupar daqui a pouco tempo o lugar negro em que os maus demónios, talvez por um mero gracejo infernal, me têm colocado. Ele era assim. Achava que os sofrimentos vêm do inferno, e decerto vêm, que são brincadeiras dos demónios. Tinha uma visão jocosa do inferno. Ao contrário do que pensam dele, era um homem surpreendentemente bem-humorado, na sua essência mais íntima. Ele mesmo se tornava um demónio para escrever os seus versos e os túmulos, os vermes, os esqueletos mórbidos, a noite funda, o poço, os lírios secos, os sábados de infâmias, os defuntos no chão frio, a mosca debochada, as mãos magras, a energúmena grei dos ébrios da urbe, a estática fatal das paixões cegas, o nigir nos neurónios, a promiscuidade das adegas, as substâncias tóxicas, a mandíbula inchada de um morfético de orelhas de um tamanho aberratório, um sonho inchado, podre, todos estes elementos da imaginação de Augusto não passavam de gracejos infernais». In Ana Miranda, A Última Quimera, Companhia das Letras, 1995, ISBN 857-164-454-3.

Cortesia de CdasLetras/JDACT