quinta-feira, 7 de abril de 2016

Senhorinha de Basto. Memórias Literárias da Vida e Milagres de uma Santa Medieval. Pedro V. Boas Tavares. «Anunciada a empresa a que mete ombros e fornecida a chave de descodificação da ficção literária, uma vez feita a “captatio” do público, o autor…»

jdact e wikipedia

«(…) Falta-nos o conhecimento das circunstâncias e contexto exacto a que obedeceu a composição do poema, mas, da sua leitura, extrai-se, indubitavelmente, que ele foi concebido para umas luzidas festas realizadas em Basto, em honra de uns hóspedes sublimes, de grande fidalguia, muito provavelmente de passagem pelo Mosteiro de S. Miguel de Refojos, e testemunhadas por gente daquela Terra. Dessa sua gente o poeta, porventura pensando nos seus irmãos de hábito, residentes e bem alatinados em Refojos, diz que pudera ser de Roma, mais que de Basto patricia. Segundo percebemos, nessas festas, levadas porventura a efeito em um dia 22 de Abril, comemoração litúrgica de Santa Senhorinha, Jerónimo Baía diz ter consagrado à Santa (como organizador das festas ou como autor?) uma comédia, intitulada Solo el piedoso es mi hijo. Com base na letra das alusões feitas, parece entrever-se, entre gente estraña y propria, entre galanes y Damas, alguém jovem, de varonil gala e destro cavaleiro a la gineta e a la brida, mas não parece fácil a identificação desse referido e decantado maestro de dos Sillas...
Nesta Loa, interessante e representativa pela matéria tratada e pelo relevo literário do autor, impressiona, desde logo, o carácter leve, jocoso (em certos momentos burlesco mesmo) dos seus versos, adequado às circunstâncias festivas já referidas. Devoto da Santa (Raton muy su lacayo), o autor vem louvá-la, mas a nobreza da matéria não o impede de desejar levar o seu público ao riso (Brindando, & no sin razon / Con su gracia a vuestra riza). De resto, e em síntese, estamos perante poesia de encarecimentos, e as imprevistas agudezas, subtilezas de linguagem, jogos de construção e de sentido aqui patentes, integram-se, como é evidente, na conhecida panóplia de formalismos cultistas e conceptistas do barroco. Anunciada a empresa a que mete ombros e fornecida a chave de descodificação da ficção literária, uma vez feita a captatio do público, o autor começa por deter-se na tópica hiperbolização da beleza física do retrato de Senhorinha (de criança conhecemos a imagem desta Santa, no seu templo de Basto e numa pequena imagem de vestir, de anacrónicos folhos negros e alvas rendas, que existia na capela da destruída Casa de Quintela, em S. Clemente de Basto; ontem como hoje, dir-se-á que a mortalha do hábito não permite que alguém se lembre do carácter humano da alegada e, certamente frágil, beleza daquela Bem-aventurada, pelas suas vidas apresentada sob duríssimo regime ascético, com relevo para o martírio de sanguinolentos açoites e punhadas, auto-infligidas; a iconografia conhecida, apresentando-a como austera abadessa beneditina, de olhar no Alto, báculo na mão, escassamente se lhe vendo o rosto alvo, aparentemente não favorecia a difusão da ideia da beleza de Senhorinha; alimentava-se ela, todavia, da tradição biográfica que fazia esta virgem, além de ilustre por geração, dotada de todas as boas partes naturais que levaram a afeiçoar-se-lhe e a pedi-la em casamento hum cavaleyro muy principal & muy rico, o qual dizem que era conde muy chegado à casa Real), parecendo La mas linda entre las Santas, / La mas Santa entre las lindas. Findo, com tradicional e oportuno Laus Deo, o debuxo dessa sobrenatural, idealizada e convencional formusura, o poeta passa então a evocar os principais pontos da vida e milagres de Senhorinha, remetendo-se a uma tradição hagiográfica já muito consolidada e divulgada.
É suposto que o público destinatário da Loa fosse maioritariamente conhecedor do maravilhoso desses factos e circunstâncias, sumariamente referidos, pois os próprios sermões de festa e até probabilíssimos folhetos de cordel se teriam encarregado de lhes publicitar o eco... O autor refere o nobre berço de Senhorinha [como se extrai da leitura das biografias medievais em latim, infra referidas, Senhorinha nasceu em 924 da era cristã, e faleceu em 22 de Abril de 982, com 58 anos de idade, sendo seu pai, da Casa de Sousa, conde e senhor do território de Vieira e Basto na diocese bracarense; sobre os ascendentes de Santa Senhorinha, cf. António de Castro Xavier MONTEIRO, Santa Senhorinha de Basto, advertindo todavia para a insegurança documental nesta matéria. Nos seus manuscritos, publicados em folhetim num diário católico do Porto, José Moura Coutinho, ex-cónego de S. João Evangelista, bispo de Lamego, genealogista geralmente estimado, reportando-se à origem dos Sousas, antigos Senhores de Basto, aponta a seguinte progénie a Santa Senhorinha: 1. Siubulo, filho de el-rei Ejica, dos godos, que reinou em Hespanha até o anno de 702 da era christã, o qual recebeu de seu pai o governo da cidade de Coimbra, de que se chamou conde; casou com Aldonça e teve dela. 2. Atarico, conde de Coimbra, que ficou debaixo do domínio dos mouros e alli viveu com sua mulher Phio, de quem teve Thiodo. 3. Thiodo, governador dos cristãos, teve pelo menos três filhos: Teodorico, Hermenegildo, pai de Agatão, este bisavô de S. Rosendo; 4. Ataulfo, pai de Soeiro Belfaguer, 1.º senhor da Casa de Sousa e bisavô de Santa Senhorinha, o qual parece que se ausentou para Galliza e Asturias, para ajudar os outros cristãos contra os sarracenos; teve filho a Soeiro Velfaia, o primeiro em quem o conde Pedro falla nos d'esta familia. 5. Soeiro Velfaia viveu na terra de Souza em tempo dos reis Affonso, o Casto, e Ramiro I, que foi pelo anno de 800. Dizem que foi o que deu nome ao lugar de Ariphana de Sousa, chamando-se ao principio Suarifaina; casou com Minaia Ribeiro; teve filho; 6. Upo Soares Velfaia, rico-homem que viveu pelo tempo de Affonso Magno, de Leão, e o acompanhou nas grandes guerras que teve com os mouros; casou com Omendola; teve filho; 7. Avulfo, também designado Hufo Hufes, ou Ahufo Ahufez, teve de sua mulher Teresa, Gonçoi, S. Gervaz e S. Senhorinha, santos estes tumulados em Basto, na igreja de invocação da última; ainda segundo o bispo de Lamego, Gonçoi teve de sua mulher, Mónica, a Echiguiçoi, que casou com Aragunte Soares Novelas; sucedeu na casa de Echiguiçoi seu filho Gomes Echiguis que estava sendo senhor de Basto no anno de 1045, como consta de um documento do mosteiro de Arnoia sobre a egreja de Britello], as goradas pretensões à sua mão por parte de um conde de real sangue, a profissão beneditina da donzela junto al Ave ilustre Rio (mais do que um documento sobre a sua vida, deve ser empregada para estudar a espiritualidade e os costumes das monjas beneditinas no fim do século XII ou princípios do seguinte), a duríssima vida religiosa, perpetua en la disciplina, aí levada, a passagem do Rio Ave ao Rio Basto (de S. João de Vieira a S. Jorge de Basto), e os mais importantes milagres então realizados: a súbita aparição de grande quantidade de farinha no mosteiro da Santa, como resposta às preces por si feitas, em momento de grande penúria de pão; o obediente silêncio imposto pela religiosa a umas ruidosas rãs, e a transformação, em certa ocasião (mil vezes, amplifica o poema), de água da fonte de Basto em vinho. Finalmente, referindo-se aos tempos posteriores à morte da monja, o poeta ainda lembra a cura de um cego de nascença que viera a Basto visitar o seu sepulcro (em alusão a um prodígio aí testemunhado pelo arcebispo Paio Mendes), mas, declarando deixar a lista de milagres que ia seguindo, opta por evocar, genericamente, um mudo, um surdo, coxos, mancos, hidrópicos, bem como os poderes miraculosos da terra de Senhorinha, assim aludindo à crença popular no largo espectro de propriedades curativas da pulvurenta relíquia que, em seiscentos, com ansiosa habilidade, numerosos devotos insistiam em tentar fazer desprender, pelos seus interstícios, do interior do túmulo da santa...» In Pedro Vilas Boas Tavares, Senhorinha de Basto, Memórias Literárias da Vida e Milagres de uma Santa Medieval, Via Spiritus 10, 2003.

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