terça-feira, 12 de abril de 2016

Vera Cruz. João Morgado. «As embarcações árabes que estavam junto do porto foram igualmente abalroadas, por temor que estas tivessem recolhido soldados durante a noite. Algumas ripostaram, mas a armada que já se posicionara estrategicamente para ter o domínio da baía»

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Calecute
«(…) Fogo, bradou o capitão. Fogo, gritava já rouco, uma e outra vez do alto do chapitéu, varejado de raiva, entre a névoa de fumo e o cheiro seco da pólvora que empestava a Capitânea, a nau-capitã, cabeça de toda a armada. Fogo, repetia incansavelmente num grito de batalha. E os canhões de bronze com as armas d'el-rei praguejavam aos céus com estrondo, cuspindo bolas de ferro fundido que destruíam impiedosamente as construções da cidade. Cabral vingava assim a morte de mais de cinquenta dos seus homens, vítimas duma cobarde traição de Glafer, o samorim (o rajá de Calecute era conhecido como Malayalam Samuttiri, senhor dos mares, tendo os navegadores aportuguesado o termo para samorim), senhor daquelas terras. Entre eles, Vaz de Caminha, que, mais que um devoto companheiro, fora seu amigo pessoal. Vivia-se o triste dia de 17 de Dezembro do ano do Senhor de 1500.
Meses antes, o samorim tinha autorizado a instauração de uma feitoria comercial no porto de Calecute, mas tal licença tinha gerado desde logo um forte mal-estar entre os usuais mercadores hindus e, sobretudo, entre os islamitas que controlavam o comércio daqueles mares. O descontentamento fora de tal monta que, sentindo-se coagido, o todo-poderoso daquelas terras entendera por bem virar o seu rosto divino para o lado, deixando que uma horda de sujeitos a soldo matasse os portugueses presentes na feitoria. Sabia que a represália dos portugueses seria inevitável, mas também sabia que a armada não tinha homens suficientes para virem a terra pedir meças com os seus guerreiros, tanto mais que tinha a mourama do seu lado. O que não contava era com o alcance e ferocidade dos canhões da armada, um poder de fogo nunca visto por aquelas paragens.
Logo no primeiro dia de bombardeio, uma parte dos muros de suporte da povoação caíram por terra. Imensas habitações desmoronaram sobre as gentes que ficaram soterradas nos pedregulhos. Pedras, madeiras, barro, metais, confundiram-se nos destroços com o sangue escuro dos que tinham sucumbido à avalanche. Os corpos ficaram esmagados, com a carne rasgada e as vísceras a servir de repasto aos animais pestjlentos que saíam dos buracos infectos e sombrios para conquistar o seu naco de carne morta. As armas caíram por terra, os estandartes tombaram, sem orgulho, junto aos soldados mortos. Calecute não tinha muralhas, era uma terra de comércio aberta ao mar. Dos barcos avistava-se todo o casario e podia-se ver como os pelouros impiedosos continuavam a vergastar a cidade, derrubando casas, soterrando as numerosas e amedrontadas famílias que pereciam entre rezas aos seus deuses. As suas vidas acabavam ali. Estonteados, não gritavam. Sem entenderem porque o mundo lhes desabava na cabeça, limitavam-se a procurar esconderijo nos lugarejos mais sombrios para que a morte não os enxergasse nos olhos. Apenas se perguntavam porque estavam zangados os céus, porque discutiam os deuses. E as esferas de ferro entravam enraivecidas paredes dentro, retalhando as casas, derribando-as, transformando-as em tumbas onde a morte sorria. Os canhões não estancavam o seu fogo. Fundeadas ao largo da povoação, com a Cruz de Cristo nas velas, quatro das cinco embarcações da armada portuguesa disparavam os seus canhões alternadamente, empenhadas que estavam em aniquilar aquela terra de pagãos assassinos.
As embarcações árabes que estavam junto do porto foram igualmente abalroadas, por temor que estas tivessem recolhido soldados durante a noite. Algumas ripostaram, mas a armada que já se posicionara estrategicamente para ter o domínio da baía, disparou com tal intensidade, tão certeira na sua mira, que mesmo antes de nascer o sol já todos os barcos daquele porto tinham sucumbido sem honra de combate digno desse nome. Uma embarcação de maior porte, semelhante a uma nau portuguesa, ainda esboçou um ataque à nau Capitânea, mas Nicolau Coelho, capitão da caravela São Pedro, atento a tudo o que se agitava em seu redor, disparou uma descarga de artilharia a curtíssima distância, deixando-a tolhida, com o casco fendido e a meter água. A danação dos portugueses era de tal monta que o capitão acabou por ceder aos urros dos seus homens e ordenar uma abordagem. Indisciplinados, com os olhos raiados de sangue, lançaram os cabos de abordagem e saltaram a bordo ainda a arder na febre da vingança, procurando uma luta corpo a corpo, esgrimindo espadas e talhando a carne dos que ainda ofereciam peleja digna desse nome. Os mais fortes levavam machados pesados que decepavam cabeças e abriam peitos. Era tanto o sangue, que o convés se tornava escorregadio sob as botas dos oficiais ou sob os pés descalços da marinhagem. Alguns levavam garrafas cheias de pólvora e chumbo, com o pavio pendente, chegavam-lhes fogo e atiravam o vasilhame mortal para o meio das hostes inimigas. As explosões chacinavam tudo à sua volta indiscriminadamente, os homens tombavam no chão como pássaros mortos, desfigurados, esquartejados; as espadas aliviavam os que sofriam, trespassando-os, aligeirando-lhes a morte. Muitos dos homens do samorim saltaram para o mar sem dignidade, temerosos da carga animalesca que lhes invadira a embarcação. Os outros, apanhados na fuga, eram simplesmente esventrados pelo metal frio das espadas e depois degolados. Alguns foram agrilhoados num poste e atormentados até à morte. Vamos enforcar o samorim, com as tripas do último perro índio, gritavam os soldados em histeria. As embarcações, ou a parca amostra que delas restava, estavam, entretanto, a ser saqueadas e incendiadas. Dez navios islâmicos que tinham lançado âncora no porto foram também arrestados, tendo-lhes sido confiscada a mercadoria e acabada a tripulação sem piedade. Alguns dos prisioneiros a quem reconheciam a arte das armas, foram capados e os sexos mutilados metidos bocas adentro antes de serem jugulados. As cabeças decepadas, algumas com as vergonhas ainda embutidas entre os dentes, a escorrerem sangue, foram recolhidas em cestos e colocadas num pequena embarcação, para que pudessem dar a terra num claro aviso aos traidores de Portugal. Foram centenas de cabeças desprendidas dos corpos». In João Morgado, Vera Cruz, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-207-6.

Cortesia de CAutor/JDACT