sexta-feira, 15 de abril de 2016

Entre Malagrida e Pombal. As Memórias da última condessa de Atouguia. Zulmira C. Santos. «a Exa condeça d’Atouguia inteiramente innocente, e sem a menor mácula de culpa de inconfidência, por não haver prova alguma, da qual resultasse indicio de culpada»

Cortesia de wikipedia e jdact

Para o retrato de uma senhora nobre no século XVIII. A natureza do texto
«(…) Tanto quanto se pode concluir das informações proporcionadas pelo padre Valério Cordeiro, e porque ainda não foi possível consultar directamente qualquer cópia, o título Memorias da última condessa de Atouguia. Manuscrito autobiographico inédito, que ocorre na primeira edição de 1916, e que foi substituído por A última condessa de Atouguia. Memorias autobiographicas, na segunda, de Braga, 1917, não pertence ao texto e releva da directa responsabilidade de quem preparou a edição. Em todo o caso, as palavras iniciais da presumível autora inscrevem o discurso no registo autobiográfico ou memoríalistico, na impossibilidade de traçar fronteiras precisas, no sentido da enunciação na primeira pessoa: o reverendo padre Frei Adriano, meu director, me manda por Santa Obediência escrever o seguinte que são os primeiros toques da minha conversão e a direcção do padre Gabriel Malagrida. […]. Tendo a edade de quinze anos, no anno 1737, estando eu nesse tempo ainda em casa de meus paes, que assistiam na cidade de Elvas, por meu pae ser sargento-mór do regimento daquella praça, vieram a ella missionários do Varatojo, por cuja razão disse minha mãe, que queria ir ouvi-los, e eu, que costumava ir com ella fora, sempre que ella sahia, disse-lhe que eu ficaria nesse dia em casa, porque me aborrecia muito ouvir sermões. Ella me respondeu que por isso mesmo queria que eu fosse a elle, e, como eu a amava infinito e em tudo desejava dar-lhe gosto, logo perdi a violencia que tinha em ir; de sorte que fui com indifferença, sem apetite nem com violência. O missionário era excellente, muito douto e muito bom pregador; chamava-se frei Lourenço, que hoje é bispo do Algarve( a partir de 1452, tendo falecido em 1783).
Do ponto de vista cronológico, há pelo menos três momentos fundamentais na enunciação do relato: a data da redacção, que várias indicações intratextuais, analisadas por Valério Cordeiro, fazem remontar de forma bastante segura a 1783, ou pelo menos ao intervalo temporal entre 1777 e 1783 (são várias as ocasiões em que dona Mariana projecta o passado no presente, criando assim uma relação entre o momento em que escreve e o tempo ao qual se reporta. Tal acontece na alusão anterior a frei Lourenço de Santa Maria, mas outras existem: quando fala de uma ida ao paço de seu pai, refere que achou de serviço o visconde de Ponte de Lima pai do visconde hoje secretario de Estado; ora como a nomeação de Tomás Xavier Lima, para secretário, foi feita depois da queda do marquês de Pombal, em 1777, o texto só pode ter sido escrito depois. Ao argumentar em favor desta hipótese, o padre Valério comete algumas incorrecções cronológicas, pois pensa que Tomás Xavier Lima se tornou secretário apenas depois da morte do marquês de Angeja, Pedro José Noronha Camões [1716-1788], registando como data de falecimento deste 1778, o que em termos de quadro argumentativo colhia. Todavia, o 3º marquês de Angeja não morreu em 1778, mas sim em 1788, de acordo com todas as fontes consultadas. Tal não invalida, no entanto, a primeira hipótese, porque Tomás Xavier Lima foi nomeado secretário de estado em 1777, depois secretário de Estado da Guerra, do Interior, do Tesouro, e só mais tarde substitui Angeja, nas funções de direcção do Ministério, onde o marquês havia, por sua vez, substituído Pombal. Em todo o caso, a partir de 1783, o marquês de Angeja abandonou parcialmente o cargo, por razões de saúde. As palavras da condessa poderiam, eventualmente, aludir a esta circunstância, o que contribuiria para fixar a data de composição por 1783. Porém, a referência mais pertinente parece ser precisamente a de frei Lourenço que a condessa diz ser bispo do Algarve e que faleceu justamente em 1783. Sobre o período em que frei Lourenço, arcebispo de Goa entre 1743 e 1750, foi bispo do Algarve, de 1751 a 1783, com uma interrupção entre 1773 e 1777, por ter sido obrigado a renunciar por Pombal que procedeu ao reordenamento espacial das dioceses do reino, resignação essa que não foi aceite pelo papa, tendo frei Lourenço regressado depois da queda do marquês), o momento de início do escrito, 1737, e o lapso de tempo que merece maior atenção por parte da narradora, entre 1756 e 1759, e que contempla mais directamente a direcção espiritual de Malagrida.
A ligação e relações entre estes momentos fundamentais na economia da narrativa parecem demasiado óbvias para não serem intencionais: em 1783, dona Mariana já tinha recebido a sentença que a declarava inocente [(decreto de 30 de Junho de 1780) (a Gazeta de Lisboa de 25 de Julho de 1780 (nº XXX) regista: a Rainha N. Senhora, por Decreto de 30 de Junho, houve por bem declarar que na sua Real presença se tinha plenamente mostrado achar-se a Excellentissima condeça d’Atouguia inteiramente innocente, e sem a menor mácula de culpa de inconfidência, por não haver prova alguma, da qual resultasse indicio de culpada, podendo ser restituída ás honras, e liberdade, que por direito, e pelo seu nascimento, e qualidade lhe competem], mas, de acordo com as palavras de Bombelles acima citadas, vivia modestamente de uma pensão da coroa sem que os seus filhos pudessem usar o nome de família. Centrando o relato na experiência de direcção do jesuíta, entre 1756 e 1759, a condessa narrava justamente os anos cruciais, depois do terramoto, que envolveram o atentado contra o rei José I, em Setembro de 1758, e presenciaram o desenvolvimento do processo dos Távoras. As recordações escritas de dona Mariana terminam justamente com a dolorosa entrada no convento de Sacavém, acompanhada pelas lágrimas da filha, donaLeonor, que tinha seis anos, procurando manter uma aparente serenidade, embora se visse preza […] como traidora sem o ser. O texto era, assim, não apenas o relato de uma experiência de direcção espiritual, mas um sentido e veemente manifesto de inocência». In Zulmira C. Santos, Entre Malagrida e Pombal. As Memórias da última condessa de Atouguia, Península, Revista de Estudos Ibéricos, nº 2, 2005, 401-416, Universidade do Porto.

Cortesia UPorto/Península/JDACT