quarta-feira, 13 de abril de 2016

Diário VIII. Miguel Torga. «Tudo, menos trânsfuga da minha classe. Nasci povo, povo continuo, e povo quero morrer. A burguesia compra-me algum suor e alguns livros»

jdact

Pinhel, 21 de Outubro de 1955
«(…) Ah, sim, lá conhecer Portugal conheço-o eu! Não houve aceno de monte ou de planície a que não respondesse. Subi a todas as serras e calcurreei todos os vales desta pátria. Por isso, quando chegar a hora da grande jogada, tenho um trunfo a meu favor que há-de desconcertar a morte: a íntima certeza de que não vou estranhar a cama, seja qual for o sítio onde me enterrem.

Souro Pires, 22 de Outubro de 1955
Às vezes chego a pensar se não será a nossa vocação de arqueólogos que vai sistematicamente reduzindo Portugal a ruinas.

S. Martinho de Anta, 29 de Outubro de 1955
O solar da família, térreo, de telha vã, encimado pelo seu brasão de armas esquartelado, com enxadões em todos os campos… Foi desta realidade que parti, e é a esta realidade que regresso sempre, por mais voltas que dê nos caminhos da vida. É uma certeza de marco com testemunhas, que nunca me deixa desorientado quando quero avivar as estremas da alma. Basta escavar um pouco a crosta da aparência, e aí estou eu na matriz, confrontado. Há tempos, em Lovios, no Gerês espanhol, depois de conversar com vários habitantes da povoação, interessei-me por um tumor a despontar no pescoço de uma velhota. É doutor…, informou o meu companheiro. Que doutor! Ele é como nós!... E sou. Tudo, menos trânsfuga da minha classe. Nasci povo, povo continuo, e povo quero morrer. A burguesia compra-me algum suor e alguns livros, mas é confiado na subversão do seu poder que vivo. Aliás, quer profissionalmente, quer literariamente, ainda é quando ponho as mãos e molho a pena nas chagas e no sangue dos meus que dou o melhor de mim. Foi na clínica rural que me senti médico a sério, e cuido que as coisas mais válidas que escrevi sabem à terra nativa que trago agarrada aos pés. Envergonhado de representar o ingrato papel de cronista dum mundo que nem me pode ler, como um dia confessei, é nele que acredito, é ele que me inspira e é por ele que luto. Conheço-lhe os defeitos, sei que são falsíssimos os quadros bucólicos das moleirinhas líricas e dos pastores de avena, e nem me quero lembrar dos torcegões que é capaz de dar à verdade a manha dum honrado cavador… Mas, além de ser uma tolice esperar que a condição humana faça distinções, procuro compreender a causa de certas dessas mazelas. Melhor fora que milénios de servidão, de fome, de ignorância e de logro não criassem desconfiança, inveja, mesquinhez e aviltamento! Resta saber se, iluminado por outro sol, o panorama seria o mesmo, e se, apesar de tudo, não é o único que dá esperanças... Pelo que me diz respeito, apenas a olhá-lo consigo descortinar sentido e futuro à vida. E quando aqui chego, embrulhado na cultura e no diploma, que, de resto, só me ajudaram a consciencializar o meu caso, é o bilhete de identidade passado pela tal camponesa galega que me deixa bater sem constrangimento à porta do ninho. Nem o dono que me manda entrar, nem os vizinhos que, curiosos, espreitam dos seus buracos, me podem estranhar. Sou como eles…

S. Martinho de Anta, 30 de Outubro de 1955
Tatuagem
Um verso apenas, mas que fique impresso
na morena epiderme
do teu corpo maciço;
um verso agradecido
à universal beleza
do teu rosto redondo,
infatigavelmente variado;
um verso branco e puro
de rendido louvor
à serena ironia
com que deixas brincar no teu regaço
a inquietação,
e devolves o eco
de cada grito
à boca enfurecida,
Terra, pátria da vida!
Eva que o sol, fecunda do infinito!»

In Miguel Torga, Diário VIII, Coimbra, 1959, 1999, Publicações Dom Quixote.

Cortesia DQuixote/JDACT