segunda-feira, 4 de abril de 2016

Elogio da Loucura. Erasmo. «Um beija as verrugas da amiga, outro deleita-se com os pólipos da sua Ana, um pai diz que o filho estrábico tem uns lindos olhos. Que é isto tudo, se não mera estultícia?»

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«(…) Há também homens que desdenham esta espécie de volúpia, preferindo o carinho e o hábito da amizade. A amizade, dizem eles, deve ser anteposta a todas as coisas; é uma coisa tão necessária como o ar, o fogo e a água. O seu encanto é tal que privar os homens dela seria tirar-lhes o sol; e é tão honesta, já que isto é uma recomendação, que os próprios filósofos a veneram como um dos melhores bens da humanidade. Que direis se vos provar que de tal bem eu sou a popa e a proa? Não farei a demonstração com argúcias dialécticas, tais como o silogismo do crocodilo ou o zorite dos corn…; mas com simples bom senso e ao alcance da mão. Dizei-me: conivência, confiança, cegueira, ilusão sobre os vícios por virtudes, não vedes as afinidades que tudo isso tem com a estultícia? Um beija as verrugas da amiga, outro deleita-se com os pólipos da sua Ana, um pai diz que o filho estrábico tem uns lindos olhos. Que é isto tudo, se não mera estultícia?
Chamemos três, quatro vezes que é estultícia, porque só a estultícia junta e conserva juntos todos os amigos. Falo dos mortais, nenhum dos quais nasce sem vício, sendo melhor aquele que menos vícios tiver. Mas entre os sapientes, que se consideram uns deuses, não se estabelece amizade alguma que não seja triste e insípida, e isto acontece com pouquíssimos. Quase todos os homens estão afastados da sabedoria, e não há nenhum que de qualquer modo não delire. Ora só os semelhantes se aproximam uns dos outros. Quando, entre eles aqueles espíritos severos, surge mútua benevolência, ela é certamente instável, e de modo nenhum duradoura; estas pessoas tristes e demasiado clarividentes discernem os vícios dos amigos de maneira tão aguda como a da águia ou da serpente do Epidauro. Mas quanto aos vícios próprios, não vêem o peso que trazem às costas. É próprio da natureza humana que ninguém seja isento de defeitos e de vícios. Assim, com as diferenças de idade e de educação, com os lapsos, os erros, os acidentes perigosos para a vida, como é que entre estes árgus poderiam gozar uma hora de amizade, se não fosse a intervenção do que os gregos chamam euéteia, que poderíamos traduzir por conveniência, tolerância, indulgência mútua. Mas quê? Cupido, autor de todas as ligações necessárias, está privado da visão. Da mesma maneira que o que não é belo, belo lhe parece, assim acontece convosco, julgando belo o que vos pertence, tal como o velho gosta da sua velha e a criança da sua boneca. Tudo isto é corrente e ridículo, mas também são estes ridículos que tornam a vida mais alegre e a sociedade mais firme». In Erasmo de Roterdão, Elogio da Loucura, tradução de Álvaro Ribeiro, colecção Filosofia e Ensaios, Livros que Mudaram o Mundo, Guimarães Editores, Lisboa, 1987, Oeiras, 2010, ISBN 978-989-682-014-5.

Cortesia de GuimarãesE/JDACT