quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Domingos Amaral. Por Amor a uma Mulher. «Abu Zhakaria conhecia a lenda fantástica daquele castelo, daquela ancestral e famosa família que se havia cruzado com Zulmira; conhecia a glória histórica dos antepassados de Fátima e Zaida»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Serra Morena, Córdova, Abril de 1126

«(…) Meteram-se a caminho numa carroça e chegaram a Hisn Abi Cherif dois dias depois, sendo recebidos por duas criadas velhas de Zulmira, cuja lealdade à família se mantinha intacta. Apesar da idade avançada, as serviçais haviam assegurado o asseio do castelo, cuidando com ternura do antigo jardim, onde nasciam o alecrim e a alfazema no meio das margaridas e das rosas, bem como das hortas e pomares, onde pontificavam as tangerinas e as laranjas, as alfaces e as cenouras, que um adoentado almocreve trocava por outros alimentos quando por ali passava. Contentes por reverem Taxfin, que recordavam com carinho, compuseram-lhe uma cama confortável, no velho quarto do casal, davam-lhe dois banhos diários e alimentaram-no com cozinhados suculentos, obrigando-o a beber elixires misteriosos, cujos ingredientes nunca revelavam. Nas semanas que se seguiram, Taxfin deliciou-se com as al-zaitunas e com o aruzz delas, doce devido ao al-sukkar que lhe juntavam; comia com gosto a sopa de isfinah e trincava com apetite o jabalii, cuja carne elas compravam ao almocreve. Em pouco tempo, ganhou forças e ânimo, e recomeçou a planear o resgate da sua família. Porém, até para as velhas mouras do castelo era evidente que uma longa viagem a Coimbra seria fatal para Taxfin, e foi tomada a decisão de ser Abu Zhakaria a chefiar a expedição ao Oeste, pois só ele, com a sua energia, a sua inteligência e a sua fidelidade, poderia ter êxito naquela aventura perigosa. O meu único temor, disse Abu Zhakaria, é deixar-vos sozinho.

Despreocupado, Taxfin virou-se para as duas criadas idosas e sorriu. Elas tomam conta de mim, descansai. Morreremos os três juntos, se nos vierem aqui atacar. Nasceu um brilho alarmado nos olhos de ambas as mouras, que só ele viu, e como de costume elas nada disseram. Além disso, afirmou Taxfin, o governador aqui não me teme. Não me queria era em Córdova, a fazer-lhe sombra! Mesmo assim preferia a vossa companhia, murmurou Abu Zhakaria. Ambos sabiam que era impossível e Taxfin decidiu mudar de assunto, falar em algo bonito, simples e profundo. Ainda vos lembrais da cara da Fátima?, perguntou. O outro pestanejou, atrapalhado, e Taxfin sorriu: um homem capaz de furar com o alfange os inimigos, e ficava aflito quando falava numa rapariga que, da última vez que a vira, tinha nove anos! Sim, confessou Abu Zhakaria, envergonhado. Todos os dias. Revelando o seu desgaste, Taxfin suspirou. Às vezes, tento recordar-me do sorriso da Zulmira, do seu rosto bonito, do calor do seu corpo, mas nem sempre o consigo.

Caiu o silêncio no quarto, enquanto as duas criadas se retiravam, levando o tabuleiro. A mais velha é do tempo da família antiga que aqui viveu, a outra chegou com Zulmira, comentou Taxfin. As duas envelhecidas mouras ainda haviam visto aquele pequeno castelo repleto de poetas, que declamavam versos de Ibn al-Barr, do rei Al-Mutamid ou de Ibn Sallam; escutado as dissertações de filósofos e juristas célebres; assistido aos disputados jogos de xadrez; ouvido a festiva música que ali se tocava. Eram do tempo em que a marca média da Hispânia estava acima de Toledo; do tempo em que Afonso VI perdia batalhas contra o pai de Ali Yusuf, em Zalaca; do tempo em que as primeiras taifas nutriam ainda uma poderosa esperança na ressurreição do califado de Córdova. Alguns walis de Sevilha, de Múrcia e de Badajoz ainda cá vieram desafiar o primeiro marido de Zulmira, contou Taxfin.

Abu Zhakaria conhecia a lenda fantástica daquele castelo, daquela ancestral e famosa família que se havia cruzado com Zulmira; conhecia a glória histórica dos antepassados de Fátima e Zaida. Elas não são minhas filhas, mas amo-as como se o fossem. O pai delas era da família Benu Umeyya, recordou Taxfin. Não havia mais poderosa família em toda a Andaluzia. Quando Taxfin as conhecera, Fátima tinha quatro anos e Zaida apenas um. Zulmira vivia naquele castelo com elas, já viúva. Ele cobiçara-a em Córdova, em dias de festejos. Era solteiro e governador da cidade, e o cargo permitira-lhe falar com ela algumas vezes. Mas Zulmira amava o marido e nunca lhe incentivara as cortesias. Taxfin admirava-a e tinha ciúmes do outro, gostava de um dia ser amado assim. – Quando recebi a notícia da morte de Hixam de Hisn Abi Cherif, só pensei no sofrimento de Zulmira. No desgosto dela, o seu amor derrotado por um estúpido acidente. Juro-te, querido Abu Zhakaria, nessa noite chorei por ela. Senti a profundidade da sua dor. Era imensa, mais escura do que uma noite sem estrelas». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

 Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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