quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

O Substituto. Philippa Gregory. «Ele vai viver, afirmou, com convicção. Mas a sua falta não seria sentida se cortássemos sua garganta na surdina. É claro que não podemos fazer isso, respondeu Isolde, trémula»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Castelo de Lucretili. Junho de 1453

«(…) Nas suas costas, os dedos de Isolde apertaram o cabo da caçarola. Quando Roberto parou para desamarrar a frente dos calções, ela teve um vislumbre nauseante da sua roupa de baixo cinza. Ele tentou agarrar-lhe o braço. Não preciso machucá-la, disse. Talvez você até goste... Girando o braço que segurava a caçarola, ela acertou um golpe na lateral da cabeça do homem. Brasas e cinzas caíram no seu rosto e no chão. Ele soltou um uivo de dor enquanto ela se desvencilhava e o golpeava outra vez com força; ele caiu como um boi gordo no matadouro. Isolde pegou num jarro, despejou água no carvão em brasa no tapete debaixo do homem e, com cautela, cutucou-o com o pé calçado com chinelo. Ele não se mexeu: estava inconsciente. Ela entrou numa saleta e destrancou a porta, chamando em voz baixa: Ishraq! Quando a menina apareceu, esfregando os olhos para se livrar do sono, Isolde lhe mostrou o homem caído no chão. Está morto?, perguntou a garota, com calma. Não, acho que não. Me ajude a tirá-lo daqui. As duas puxaram o tapete com o corpo flácido do príncipe Roberto pelo chão, deixando para trás uma trilha viscosa de água e cinzas. Levaram-no para a galeria na frente do quarto e pararam. Imagino que seu irmão tenha permitido que ele a procurasse? Isolde assentiu, e Ishraq virou a cabeça e cuspiu na cara branca do príncipe com desdém. Porque abriu a porta? Pensei que ele me ajudaria. Ele disse que tinha uma ideia para minha situação e depois entrou à força. Ele a machucou? Os olhos negros da menina percorreram o rosto da amiga. O que houve com sua testa? A porta bateu em mim quando ele a empurrou. Ele ia violá-la? Isolde assentiu. Então, ele que fique aqui, decidiu Ishraq. Pode recobrar a consciência no chão, como o cão que é, e se arrastar até ao quarto. Se ainda estiver aqui pela manhã, os criados o encontrarão e ele será motivo de chacota. Ela se abaixou e tentou sentir a pulsação dele no pescoço, nos pulsos e sob o cós volumoso dos calções. Ele vai viver, afirmou, com convicção. Mas a sua falta não seria sentida se cortássemos sua garganta na surdina. É claro que não podemos fazer isso, respondeu Isolde, trémula.

Elas o deixaram ali, deitado de costas como uma baleia encalhada e com os calções ainda desamarrados. Espere aqui. Ishraq foi ao próprio quarto e voltou depressa com uma caixinha na mão. Com delicadeza, usando apenas as pontas dos dedos e fazendo uma careta de nojo, mexeu nos calções do príncipe, deixando-os abertos. Então ergueu a camisa de linho, para que sua nudez flácida ficasse bem visível, tirou a tampa da caixa e jogou a especiaria na pele nua. O que está fazendo?, sussurrou Isolde. É pimenta seca, muito forte. Ele vai se coçar como se tivesse varíola e ficará com bolhas de assadura. Vai se arrepender muito desta noite. Vai ficar se coçando, arranhando e sangrando por um mês, e não incomodará mulher nenhuma por um bom tempo.

Isolde riu, estendeu a mão para a amiga, como o pai teria feito, e as duas mulheres juntaram os braços com as mãos nos cotovelos, como fazem os cavalheiros. Ishraq sorriu, e elas se viraram e voltaram ao quarto, fechando e trancando a porta diante do príncipe humilhado. Pela manhã, quando Isolde foi à capela, o caixão do pai estava fechado e pronto para ser sepultado na cripta da família, e o príncipe fora embora. Ele retirou a proposta pela sua mão, disse o irmão, com frieza, ao assumir seu posto, ajoelhando-se ao lado dela nos degraus da capela-mor. Imagino que tenha acontecido alguma coisa entre os dois? Ele é um patife, respondeu Isolde. E se você o mandou à minha porta, como ele alegou, então você me traiu. Ele baixou a cabeça». In Philippe Gregory, O Substituto, 2012, Editora Galera Record, Colecção Ordem da Escuridão, 2015, ISBN 978-850-140-319-3.

Cortesia de EGRecord/JDACT

Itália, Século XV, JDACT, Literatura, Philippa Gregory,