sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Jerusalém. Simon Sebag Montefiore. «Quando a Bíblia foi traduzida para o grego, depois para o latim e o inglês, ela se tornou o livro universal e fez de Jerusalém a cidade universal»

Cortesia de wikipedia e jdact

«A história de Jerusalém é a história do mundo, mas é também a crónica de uma cidade provinciana no meio das colinas da Judeia que frequentemente vivia na penúria. Jerusalém chegou a ser vista como o centro do mundo, e hoje isto é mais verdade que nunca: a cidade é o foco da luta entre as religiões oriundas de Abraão; santuário do crescente fundamentalismo cristão, judaico e islâmico; campo de batalha de civilizações em choque; linha de frente entre ateísmo e fé; centro de atracção de fascínio secular; objecto de vertiginosas teorias conspiratórias e criação de mitos via internet; palco iluminado para as câmeras do mundo na era dos noticiários 24 horas. Interesses religiosos, políticos e midiáticos alimentam-se mutuamente para torná-la intensamente escrutinada hoje mais do que em qualquer época. Jerusalém é a Cidade Santa, ainda que tenha sido sempre um antro de superstição, charlatanismo e intolerância; desejo e prémio de impérios, sem possuir, no entanto, qualquer valor estratégico; lar cosmopolita de muitas seitas, cada qual acreditando que a cidade lhe pertence com exclusividade; cidade de muitos nomes, embora cada tradição seja tão sectária que exclui todos os outros. É um lugar de tamanha delicadeza que é descrito na literatura sacra judaica no feminino, sempre uma mulher sensual e vívida, sempre uma beleza, mas às vezes uma meretriz desavergonhada, às vezes uma princesa ferida cujos amantes a abandonaram. Jerusalém é a casa do Deus único, a capital de dois povos, o templo de três religiões, e é a única cidade a existir duas vezes, no céu e na terra: a incomparável graça da Jerusalém terrena é nada se comparada às glórias da Jerusalém celeste.

O simples facto de Jerusalém ser ao mesmo tempo terrena e celestial significa que a cidade pode existir em qualquer lugar: novas Jerusaléns têm sido fundadas por todo o mundo e todos têm sua própria visão de Jerusalém. Profetas e patriarcas, Abraão, David, Jesus e Maomé, diz-se que todos eles trilharam por essas pedras. As religiões que se originaram com Abraão nasceram ali e o mundo também irá acabar ali no Dia do Juízo. Jerusalém, sagrada para os Povos do Livro, é a cidade do Livro: a Bíblia é, sob muitos aspectos, a própria crónica de Jerusalém e seus leitores, desde os judeus e primeiros cristãos, passando pelos conquistadores muçulmanos e os cruzados, até os evangélicos americanos de hoje; todos eles alteraram repetidamente sua história para realizar a profecia bíblica.

Quando a Bíblia foi traduzida para o grego, depois para o latim e o inglês, ela se tornou o livro universal e fez de Jerusalém a cidade universal. Todo o grande rei tornou-se David; todo povo especial via-se como os novos israelitas; toda nobre civilização era uma nova Jerusalém, a cidade que não pertence a ninguém e existe para todo mundo em sua imaginação. E esta é a tragédia da cidade, bem como sua magia: cada sonhador de Jerusalém, cada visitante em todas as épocas, dos Apóstolos de Jesus aos soldados de Saladino, dos peregrinos vitorianos aos turistas e jornalistas de hoje, chega com uma visão da Jerusalém autêntica, e então se decepciona amargamente com o que encontra, uma cidade sempre mutante que prosperou e minguou, que foi destruída e reconstruída muitas vezes. Mas uma vez que assim é Jerusalém, propriedade de todos, apenas a imagem que cada um tem é a correcta; a realidade maculada, sintética, deve ser mudada; todos têm o direito de impor a sua Jerusalém a Jerusalém, e com frequência isso foi feito, pela espada e pelo fogo.

Ibn Khaldun, o historiador do século XIV que é ao mesmo tempo participante e fonte de alguns dos acontecimentos relatados neste livro, observou que a história é avidamente buscada. Os homens na rua aspiram a conhecê-la. Reis e líderes competem por ela. Isso é especialmente verdade no caso de Jerusalém. É impossível escrever uma história dessa cidade sem reconhecer que Jerusalém é também um tema, um fulcro, até mesmo uma espinha dorsal, da história mundial. Numa época em que o poder da mitologia da internet significa que o mouse hi-tech e a cimitarra podem ser ambos armas do mesmo arsenal fundamentalista, a busca por factos históricos é ainda mais importante agora do que foi para Ibn Khaldun. Uma história de Jerusalém precisa ser um estudo da natureza da santidade. A expressão Cidade Santa é quase sempre usada para descrever a reverência de seus locais de culto, mas o que realmente significa é que Jerusalém tornou-se o lugar essencial na terra para a comunicação entre Deus e o homem». In Simon Sebag Montefiore, Jerusalém, 2021, Editora Crítica, 2021, ISBN 978-989-532-275-6.

Cortesia de ECrítica/JDACT

JDACT, Simon Sebag Montefiore, Literatura, Cultura e Conhecimento, Jerusalém, Religião,