quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Roma. Steven Saylor. «Fascinus não era como os génios que animavam árvores, pedras ou rios. Aqueles numes existiam sem nomes»

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«(…) A refeição terminara. Os mercadores de metais, depois de muitos gestos de agradecimento pela carne de veado, retiraram-se para o seu acampamento do outro lado da ilha. Antes de desaparecer nas sombras, Tarquécio olhou por cima do ombro e dirigiu a Lara um sorriso de despedida. Enquanto os outros se acomodavam para dormir, Larth ficou acordado mais um pouco, como de hábito. Ele gostava de observar a fogueira. Como todas as outras coisas, o fogo possuía um génio que às vezes se comunicava com Larth, mostrando-lhe visões. Enquanto as últimas brasas desapareciam na escuridão, Larth adormeceu. Larth piscou. As chamas, que se tinham reduzido a quase nada, de repente voltaram a jorrar. Ar quente espalhou-se pelo rosto dele. Os olhos ficaram ressequidos por chamas brancas que brilhavam mais do que o sol. No meio do brilho estonteante, ele percebeu uma coisa que levitava acima das chamas. Era um membro masculino, desincorporado, mas, mesmo assim, exuberante e erguido. Tinha asas, como um pássaro, e pairava a meia altura. Apesar de parecer feito de carne, era impérvio às chamas. Larth já tinha visto o falo alado antes, sempre em circunstâncias como aquela, quando olhava fixo para uma fogueira e entrava num estado de devaneio. Chegara até a dar um nome a ele, ou mais precisamente, a coisa havia plantado o seu nome na mente dele: Fascinus.

Fascinus não era como os génios que animavam árvores, pedras ou rios. Aqueles numes existiam sem nomes. Cada qual era preso ao objecto no qual residia, e havia pouco a diferenciar um do outro. Quando aqueles génios falavam, nem sempre se podia confiar neles. Às vezes eram amigáveis, mas em outras ocasiões eram travessos ou até mesmo hostis. Fascinus era diferente. Era ímpar. Existia completo, sem começo nem fim. Era evidente que, pela sua forma, tinha algo a ver com a vida e a origem da vida e, no entanto, parecia vir de um lugar fora deste mundo, esgueirando-se, por alguns momentos, por uma brecha aberta pelo calor das chamas dançantes. Uma aparição de Fascinus era sempre importante. O falo alado nunca aparecia sem dar a Larth uma resposta a um dilema que o estivesse perturbando ou sem plantar um importante novo pensamento na sua cabeça. A orientação dada a ele por Fascinus jamais o transviara. Em outras partes, em terras distantes, Grécia, Israel, Egipto, homens e mulheres veneravam deuses e deusas. Aqueles povos faziam imagens dos seus deuses, contavam histórias sobre eles e os adoravam em templos. Larth jamais conhecera aqueles povos. Ele nem mesmo ouvira falar das terras onde eles moravam e nunca encontrara ou imaginara um deus. O próprio conceito de uma divindade como aquelas que outros homens adoravam era desconhecido para Larth, mas na sua imaginação e experiência, a coisa que mais se aproximava de um deus era Fascinus.

Com um sobressalto, ele tornou a piscar.

As chamas tinham morrido. Em vez do brilho intolerável, só havia a escuridão de uma quente noite de verão iluminada pela menor fatia de lua possível. O ar que batia no seu rosto já não estava quente, mas fresco e frio. Fascinus tinha desaparecido, mas não sem meter uma ideia na mente de Larth. Ele correu para o abrigo feito de folhagem ao lado do rio, onde Lara gostava de dormir, pensando consigo mesmo: Tem que ser assim, porque Fascinus diz que tem!

Ele se ajoelhou ao lado dela, mas não foi preciso despertá-la. Ela já estava acordada. Pai? O que é? Vá ter com ele! Ela não precisou pedir uma explicação. Era o que ela ansiava por fazer, deitada inquieta e ansiosa no escuro. Tem a certeza, pai? Fascinus..., ele não terminou o raciocínio, mas ela compreendeu. Ela nunca vira Fascinus, mas o pai lhe falara sobre ele. Muitas vezes no passado, Fascinus orientara seu pai. Agora, uma vez mais, Fascinus declarara a sua vontade. A escuridão não a deteve. Ela conhecia cada desvio e curva de cada trilha da pequena ilha. Quando chegou ao acampamento do comerciante de metais, encontrou Tarquécio deitado num recesso coberto de folhagem, isolado dos outros; ela o reconheceu pela silhueta musculosa. Ele estava acordado e esperando, tal como Lara estivera deitada, acordada, aguardando, quando o pai se aproximara. Com a aproximação dela, Tarquécio ergueu-se sobre os cotovelos. Disse o nome dela num sussurro. Na sua voz havia um tremor de algo parecido com desespero; a necessidade que ele sentia fez com que ela sorrisse. Ela suspirou e abaixou-se ao lado dele. À fraca luz da lua, viu que ele usava uma espécie de amuleto, preso por uma tira de couro passada pelo pescoço. Aconchegado no meio aos cabelos do peito dele, o pedaço de metal disforme parecia captar e concentrar o fraco luar, reflectindo um brilho mais forte do que a própria lua.

Os braços dele, os braços que ela tanto admirara antes, estenderam-se e se fecharam em torno dela num abraço surpreendentemente delicado. O corpo dele estava tão quente e nu quanto o dela, mas muito maior e mais duro. Ela se perguntou se Fascinus estava com eles no escuro, porque pareceu sentir o bater de asas entre as pernas deles enquanto era penetrada por aquilo que dava origem à vida». In Steven Saylor, 2007, Bertrand Editora, 2008, ISBN 978-972-251-645-7.

Cortesia de BertrandE/JDACT

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