domingo, 19 de dezembro de 2021

Simon Sebag Montefiore. Jerusalém. «Penso que é a melhor maneira de trazer a cidade à vida e mostrar como as suas complexas e inesperadas verdades são o resultado da sua história. É apenas mediante a narrativa cronológica…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) A concorrência para possuir a contagiante santidade de outros levou alguns locais de culto a se tornarem sagrados para todas as três religiões, primeiro sucessivamente e depois simultaneamente; reis decretaram e homens morreram por esses lugares, e agora, no entanto, estão quase esquecidos. O monte Sião foi o local de frenética reverência judaica, muçulmana e cristã, mas hoje em dia há poucos peregrinos muçulmanos ou judeus, e ele é basicamente cristão outra vez. A verdade muitas vezes é menos importante que o mito. Em Jerusalém, não me pergunte a história dos factos, diz o eminente historiador palestino, dr. Nazmi al-Jubeh. Tire aficção e não sobra nada. A história aqui é tão pungentemente poderosa que é repetidamente distorcida. A própria arqueologia é uma força histórica, e os arqueólogos às vezes têm possuído tanto poder quanto os soldados, recrutados para adequar o passado ao presente. Uma disciplina que almeja ser objectiva e científica pode ser usada para racionalizar preconceitos étnico-religiosos e justificar ambições imperiais. Israelenses, palestinos e imperialistas evangélicos do século XIX foram todos culpados de recrutar os mesmos acontecimentos e atribuir-lhes significados e factos contraditórios. Logo, uma história de Jerusalém precisa ser uma história tanto da verdade como lenda. Mas existem factos, e este livro busca narrá-los, por menos palatáveis que sejam para um lado ou para outro.

Meu objectivo aqui é escrever a história de Jerusalém no seu sentido mais amplo para leitores em geral, sejam eles ateus ou crentes, cristãos, muçulmanos ou judeus, sem uma agenda política, mesmo nas contendas actuais. Conto a história cronologicamente, por meio das vidas de homens e mulheres, soldados e profetas, poetas e reis, camponeses e músicos, e das famílias que fizeram Jerusalém. Penso que é a melhor maneira de trazer a cidade à vida e mostrar como as suas complexas e inesperadas verdades são o resultado da sua história. É apenas mediante a narrativa cronológica que se evita a tentação de ver o passado através das obsessões do presente. Tentei evitar a teleologia, escrever a história como se ela fosse inevitável. Considerando que cada mutação é uma reacção àquela que a precedeu, a cronologia é o melhor caminho para dar sentido a essa evolução, de responder à pergunta, porquê Jerusalém?, e mostrar porque as pessoas agiram como agiram.

Espero que também seja uma forma agradável de contar. Quem sou eu para arruinar uma história que, para usar um clichê de Hollywood, neste caso merecido, é a maior história já contada? Entre milhares de livros sobre Jerusalém, há muito poucas narrativas históricas. Quatro épocas, David, Jesus, as Cruzadas e o conflito árabe-israelense, nos são familiares graças à Bíblia, aos filmes, aos romances e aos noticiários, mas muitas vezes são mal compreendidas. Quanto ao resto, desejo sinceramente trazer aos leitores muito da história esquecida. Esta é uma história de Jerusalém como centro da história do mundo, mas não pretende ser uma enciclopédia de cada aspecto, nem um guia para cada nicho, portal ou arco em cada edifício. Não é uma história minuciosa dos ortodoxos, latinos ou arménios, nem das escolas de direito islâmico Hanafi ou Shafii, nem dos judeus hassídicos ou caraítas, e tampouco é narrada de algum ponto de vista específico. A vida da cidade muçulmana desde os mamelucos até o Mandato tem sido negligenciada. As famílias de Jerusalém têm sido estudadas por académicos de vivência palestina, porém raramente cobertas por historiadores populares.

Suas histórias têm sido e continuam sendo extremamente importantes: algumas fontes principais ainda não são acessíveis em inglês, no entanto eu as fiz traduzir e entrevistei os membros das famílias de todos esses clãs visando aprender suas narrativas. Mas elas são apenas parte do mosaico. Esta não é uma história do judaísmo, cristianismo ou Islão, e muito menos um estudo da natureza de Deus em Jerusalém: tudo isso tem sido feito com extrema competência por outros, como no excelente Jerusalem: One City, Three Faiths [Jerusalém: Uma cidade, três religiões. Companhia das Letras, 2000], de Karen Armstrong. E também não é uma história detalhada do conflito Israel-Palestina: não há outro tema da actualidade mais estudado. Mas meu desafio intimidador é cobrir todas essas coisas, e espero que na proporção adequada. Minha tarefa é buscar factos, não adjudicar entre os mistérios de diferentes religiões. Com certeza não reivindico o direito de julgar se as maravilhas divinas e os textos sagrados das três grandes religiões são verdade. Qualquer um que estude a Bíblia ou Jerusalém tem que reconhecer que há muitos níveis da verdade. As crenças de outras religiões e outras épocas nos soam estranhas, enquanto os costumes familiares do nosso próprio tempo e lugar sempre parecem eminentemente razoáveis. Mesmo o século XXI, que muitos dão a impressão de enxergar como o próprio apogeu da razão secular e do bom senso, possui suas próprias sabedorias convencionais e ortodoxias quase religiosas que parecerão incompreensivelmente absurdas para nossos bisnetos. Mas o efeito da religião e seu milagre na história de Jerusalém são sem dúvida reais, e é impossível conhecer Jerusalém sem algum respeito pela religião». In Simon Sebag Montefiore, Jerusalém, 2021, Editora Crítica, 2021, ISBN 978-989-532-275-6.

Cortesia de ECrítica/JDACT

JDACT, Simon Sebag Montefiore, Literatura, Cultura e Conhecimento, Jerusalém, Religião,