sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

No 31. Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Ao ver o príncipe sacudir-se mais uma vez, Gonçalo cuspiu para o chão.Continuava enjoado, ainda lhe corria o vinho nas veias e as tripas tinham-se-lhe revoltado, expulsando o toucinho que comera na véspera, na estalagem»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Serra Morena, Córdova, Abril de 1126

«(…) Taxfin olhou pela janela, para a serra Morena, que rodeava o velho castelo, e depois disse: Hixam de Hisn Abi Cherif está enterrado naquela pequena cuba, ali no monte. Com a cara virada para Meca, tal como o pai. A Zulmira ia lá muito, colocar-lhes margaridas nos túmulos. Fez uma pausa e suspirou: Podia ter sido tão grande, mas acabou discreto, e hoje já ninguém em Córdova se lembra dele. Taxfin viera à cerimónia fúnebre, como era obrigação do governador da cidade, e manifestara o seu pesar à viúva Zulmira, mas retirara-se no final, pois não era dia de intimidades. Paciente, mas determinado, deixara passar um ano, durante o qual enviara a Zulmira apenas duas mensagens de alento, fazendo-a perceber com subtileza que não a esquecera, mas que, apesar de interessado, não tentara aproximar-se, temendo que ela ainda não estivesse preparada para amar outra vez. Um dia, encontrei-a em Córdova, a passear perto da grande mesquita. O meu coração quase explodiu de alegria! Trazia as filhas pela mão. A Fátima, com cinco anos, e a Zaida, com dois. Eu vira-as a primeira vez no enterro do pai, e amava-as já. Eram tão bonitas, tão alegres, duas crianças felizes a saltitarem num jardim! Taxfin suspirou, saudoso.

Ficámos a conversar uma hora, e quando nos despedimos perguntei-lhe se a podia ir visitar, e Zulmira autorizou-me. Assim começara aquele amor. Casados, tinham vivido anos de enorme felicidade até à tarde nefasta em Coimbra, quando Zulmira e as filhas foram aprisionadas pelas tropas de dona Teresa. Descansai, prometo trazê-las de volta, afirmou Abu Zhakaria. Matarei quantos cristãos for preciso. Foi essa expedição que partiu na manhã seguinte, ao nascer do Sol, do castelo de Hisn Abi Cherif. Os arregimentados eram cerca de quarenta, cujo putativo alarife, Abu Zhakaria, considerava serem suficientes para um fossado rápido. Quando se despediu dele, Taxfin apenas lhe disse: Vai, querido Abu, e traz de volta as minhas meninas e a Zulmira. Depois, lançou uma profecia que surpreendeu o outro: Um dia, casareis com a Fátima aqui, no castelo dos Benu Umeyya! Abu Zhakaria contou-me que ficou ligeiramente embaraçado, e depois montou o seu cavalo e conduziu-o para fora do castelo, liderando a comitiva de mercenários. Ao passar a primeira curva na estrada, olhou para o topo de uma elevação, e viu o mausoléu onde repousavam os restos mortais de Hixam e de seu pai, os dois últimos Benu Umeyya. À porta da pequena arrábida estava uma das velhas criadas mouras, com a mão direita pousada junto ao coração, e Abu Zhakaria reparou que ela tinha lágrimas a escorrerem pelo rosto, e acreditou que chorava porque sabia que alguém ia morrer.

Viseu. Sábado de Aleluia. Abril de 1126

O Sol já nascera naquele Sábado de Aleluia, mas o frio que a manhã herdara da madrugada fazia-se sentir ainda, e nós estávamos enrolados nos nossos mantos, para evitar constipações. Na véspera, tínhamos combinado ir caçar logo à prima hora, mas o Braganção falhara o encontro, à porta das cozinhas do castelo. Lá dentro, a padeira cozia o pão num forno a lenha e, enquanto aquele inebriante cheiro nos subia pelas narinas, várias mulheres passaram, com cestas à cabeça, cheias de legumes e frutas, aumentando o nosso apetite. Decidimos aguardar pelo Braganção, mas sobretudo pelo pão, para não abalarmos de estômago vazio.

A meu lado, Afonso Henriques estava sonolento. Na noite anterior, Raimunda mostrara-se dotada de mais energia do que era habitual, e ele dormira menos do que devia. Gostava da disponibilidade permanente da minha prima, mas confessou-me que pensara em Chamoa. A bela galega era feminina e irresistível, embora ele pressentisse nela uma inquietude perigosa, causada pelas lisonjas masculinas. Chamoa adorava ser cortejada, isso via-se a léguas, e o meu amigo, tal como minha esposa Maria, temia o ligeiro descontrolo das suas tentações. Gulosos machos, como Paio Soares ou o primo Mem Tougues, de bom grado lhe ferrariam o dente. Julgo que foi em Viseu que o meu melhor amigo descobriu o que era ter ciúmes. Sentia-se encantado, mas também sujeito à rivalidade, à disputa. Não desejava ser dominado, ficar à mercê dela, e rastejar aos seus pés seria uma fraqueza imperdoável para um príncipe. Talvez por isso, naquela manhã o meu melhor amigo estava sempre a dar uma espécie de estremeções espartanos. Ele dizia que era para espevitar...

Ao ver o príncipe sacudir-se mais uma vez, Gonçalo cuspiu para o chão.Continuava enjoado, ainda lhe corria o vinho nas veias e as tripas tinham-se-lhe revoltado, expulsando o toucinho que comera na véspera, na estalagem. Porcaria que nos serviram, resmungou. O príncipe perorou: Não culpeis o vinho, bebestes de mais. Gonçalo, irritado, protestou: Que sabeis vós, haveis estado lá? Afonso Henriques sorriu. Era sempre assim, o filho do Sousão. Afogava-se no vinho, como o Braganção, que nunca mais chegava. Nem sabem o que perderam..., murmurou Gonçalo». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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