sábado, 18 de dezembro de 2021

Jerusalém. Simon Sebag Montefiore. «A Bíblia tomou o lugar do Estado judeu e do Templo, e tornou-se, segundo Heinrich Heine, a pátria portátil dos judeus, a Jerusalém portátil. Nenhuma outra cidade tem seu próprio livro e nenhum outro livro guiou de tal maneira o destino de uma cidade»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Precisamos também responder à pergunta: de todos os lugares do mundo, porquê Jerusalém? Era um local remoto, afastado das rotas de comércio da costa do Mediterrâneo; carecia de água; era um forno sob o sol do Verão, gelado nos ventos de Inverno, e suas pedras denteadas eram incómodas e inóspitas. Mas a escolha de Jerusalém como cidade do Templo era em parte decisiva e pessoal, em parte orgânica e evolucionária: a santidade ia-se tornando mais e mais intensa por ter sido santa por tanto tempo. Santidade requer não só fé e espiritualidade, mas também legitimidade e tradição. Um profeta radical que apresente uma visão nova precisa explicar os séculos que se passaram antes e justificar sua própria revelação na linguagem e na geografia da santidade aceitas, as profecias de revelações anteriores e os locais há muito reverenciados. Nada torna um local mais santo do que a concorrência de outra religião. Muitos visitantes ateus são repelidos por essa santidade, vendo-a como superstição contagiosa numa cidade que sofre uma pandemia de intolerância religiosa. Mas isso é negar a profunda necessidade humana da religião, sem a qual é impossível compreender Jerusalém. Religiões devem explicar as frágeis alegrias e perpétuas ansiedades que mistificam e assustam a humanidade: precisamos sentir uma força maior que nós mesmos. Respeitamos a morte e ansiamos por encontrar nela um significado. Como local de encontro entre Deus e o homem, é em Jerusalém que essas questões são resolvidas no Apocalipse, o Fim dos Dias, quando haverá uma guerra, uma batalha entre Cristo e o anticristo, quando a Caaba virá de Meca para Jerusalém, quando será o julgamento, a ressurreição dos mortos e o reinado do Messias e o Reino do Céu, a Nova Jerusalém. Todas as três religiões oriundas de Abraão acreditam no Apocalipse, porém os detalhes variam conforme o credo e a seita. Os secularistas podem encarar tudo isso como baboseira, mas, ao contrário, tais ideias são correntes demais. Nesta época de fundamentalismos judaico, cristão e muçulmano, o Apocalipse é uma força dinâmica na febril política mundial. A morte é a nossa companheira constante: peregrinos há muito vêm a Jerusalém para morrer e ser enterrados ao redor do monte do Templo, de modo a estar prontos para se erguer novamente no Apocalipse. E continuam vindo. A cidade é cercada por cemitérios e se assenta sobre eles; as encarquilhadas partes de corpos de santos antigos são reverenciadas, a mão direita ressecada e enegrecida de Maria Madalena ainda é exibida na Sala Superior Ortodoxa Grega na igreja do Santo Sepulcro. Muitos santuários, até mesmo muitas casas privadas, são construídos em volta de tumbas. As trevas dessa cidade dos mortos brotam não só de uma espécie de necrofilia, mas também da necromancia: os mortos aqui estão quase vivos, ainda que esperando pela ressurreição. O interminável combate por Jerusalém, massacres, mutilações, guerras, terrorismo, cercos e catástrofes, transformou o lugar num campo de batalha: nas palavras de Aldous Huxley, o matadouro das religiões; nas de Flaubert, uma casa de carnificina. Melville chamou a cidade de caveira cercada por exércitos de mortos, enquanto Edward Said recordava-se de que seu pai odiava Jerusalém porque lembrava a morte.

Esse santuário de céu e terra nem sempre evoluiu conforme a Providência. As religiões começam com uma centelha revelada a um profeta carismático, Moisés, Jesus, Maomé. Impérios são fundados e cidades são conquistadas pela energia e sorte de um senhor da guerra. As decisões de indivíduos, a começar pelo rei David, fizeram Jerusalém ser Jerusalém. Sem dúvida, havia escassa perspectiva de que a reduzida cidadela de David, capital de um pequeno reino, viesse a se tornar o centro de atracção do mundo. Ironicamente, foi a destruição de Jerusalém por Nabucodonosor que criou a aura de santidade, porque a catástrofe levou os judeus a registar e aclamar as glórias de Sião. Tais cataclismos costumavam levar ao desaparecimento de povos. No entanto, a exuberante sobrevivência dos judeus, sua obstinada devoção ao seu Deus e, acima de tudo, o registo da sua versão da história na Bíblia assentaram os alicerces para a fama e a santidade de Jerusalém. A Bíblia tomou o lugar do Estado judeu e do Templo, e tornou-se, segundo Heinrich Heine, a pátria portátil dos judeus, a Jerusalém portátil. Nenhuma outra cidade tem seu próprio livro e nenhum outro livro guiou de tal maneira o destino de uma cidade». In Simon Sebag Montefiore, Jerusalém, 2021, Editora Crítica, 2021, ISBN 978-989-532-275-6.

Cortesia de ECrítica/JDACT

JDACT, Simon Sebag Montefiore, Literatura, Cultura e Conhecimento, Jerusalém, Religião,