sábado, 4 de dezembro de 2021

O Substituto. Philippa Gregory. «Alguns meses depois, Luca estava na estrada de Roma cavalgando para leste. Vestia um manto simples e uma capa marrom-avermelhada, e cavalgava a sua mais nova aquisição»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Castelo de Lucretili. Junho de 1453

«(…) Claro que não fiz isso. Lamento, fiquei bêbado como um idiota e disse a ele que poderia ir defender a própria causa. Porque abriu a porta? Porque acreditei que seu amigo era um homem honrado, assim como você. Agiu muito mal ao destrancar a porta, repreendeu o irmão. Abrir a porta de seus aposentos a um homem, a um bêbado! Você não sabe se cuidar. Meu pai tinha razão, temos de colocá-la num lugar seguro. Eu estava segura! Estava no meu próprio quarto, no meu próprio castelo, conversando com o amigo de meu irmão. Não deveria haver riscos, respondeu, zangada. Você não devia ter trazido um homem desses à nossa mesa de jantar. Meu pai nunca deveria ter acreditado que ele seria um bom marido para mim. Ela levantou-se e foi à nave central, seguida pelo irmão. Mas, afinal, o que disse que o aborreceu tanto? Isolde conteve um sorriso ao pensar na caçarola chocando contra a cabeça gorda do príncipe. Deixei meus sentimentos bem claros. E nunca mais me encontrarei com ele. Ora, isso vai ser fácil, disse Giorgio asperamente, já que nunca será capaz de se encontrar com homem algum. Se não se casar com o príncipe Roberto, terá de ir para a abadia. O testamento de nosso pai não lhe deixa alternativa. Isolde parou para absorver as palavras dele e, hesitante, pôs a mão no seu braço, perguntando como poderia convencê-lo a deixá-la livre.

Não adianta ficar assim, disse ele, de forma rude. Os termos do testamento são claros, eu lhe disse ontem à noite. Era o príncipe ou o convento. Agora é só o convento. Partirei em peregrinação, propôs. Vou para longe daqui. Não partirá. Como sobreviveria, para começar? Não consegue manter-se segura nem dentro da própria casa! Ficarei com alguns amigos de pai, qualquer um. Posso procurar o filho do meu padrinho, o conde da Valáquia, ou posso ir atrás do duque de Bradour... Ele estava sério. Não pode. Sabe que não pode. Deve fazer o que o pai ordenou. Não tenho escolha, Isolde. Deus sabe que eu faria qualquer coisa por você, mas o testamento é claro e tenho de obedecer a meu pai, assim como você. Irmão..., não me obrigue a isso. Ele virou-se para a parede em arco da capela e encostou a testa na pedra fria, como se estivesse com dor de cabeça. Irmã, nada posso fazer. O príncipe Roberto era a sua única chance de escapar da abadia. É o testamento de nosso pai. Jurei sobre sua espada, sobre sua própria espada, que cuidaria para que fosse cumprido. Minha irmã..., não há nada que eu possa fazer, nem você. Ele prometeu que deixaria sua espada para mim. É minha agora, como todo o resto. Ela pôs a mão no ombro do irmão, gentilmente. Se eu fizer um juramento de celibato, não posso ficar aqui com você? Não me casarei com ninguém. O castelo é seu, bem vejo. No fim, ele fez como todos os homens e favoreceu o filho em detrimento da filha. No fim, fez como todos os grandes homens e excluiu a mulher da riqueza e do poder. Mas, se eu morar aqui, pobre e sem poder, sem jamais ver um homem, obediente a você..., não posso ficar? Ele negou com a cabeça. Não é minha vontade, mas a dele. E é assim, como você mesma admite, que o mundo funciona. Ele a criou quase como se você tivesse nascido menino, com riqueza e liberdade demais. Mas, agora, você deve viver como uma nobre. Deveria ficar feliz, pelo menos, com a proximidade da abadia, assim não precisará se afastar muito das terras que sei que ama. Não foi mandada para o exílio, ele podia tê-la enviado a qualquer lugar. Em vez disso, ficará na nossa propriedade: na abadia. Vou vê-la de vez em quando. Levarei as novidades. Talvez depois você possa cavalgar comigo. Ishraq poderá ir comigo? Pode levar Ishraq, pode levar todas as suas damas, se desejar e se elas estiverem dispostas a ir. Mas esperam por você na abadia amanhã. Terá de ir, Isolde. Terá de fazer seus votos de freira e tornar-se abadessa. Não tem alternativa. Ele a encarou novamente e viu que tremia como uma jovem égua forçada aos arreios pela primeira vez. É como ser aprisionada, sussurrou. E não fiz nada de errado. Ele também tinha lágrimas nos olhos. É como perder uma irmã. Estou sepultando um pai e perdendo uma irmã. Não sei como será sem você por aqui.

 

Abadia de Lucretili. Outubro de 1453

Alguns meses depois, Luca estava na estrada de Roma cavalgando para leste. Vestia um manto simples e uma capa marrom-avermelhada, e cavalgava a sua mais nova aquisição. Estava acompanhado pelo criado, Freize, um jovem de ombros largos e cara quadrada, que recobrara a coragem quando Luca saiu do mosteiro e se voluntariara para trabalhar para o jovem, seguindo-o aonde a missão o levasse. O abade teve suas dúvidas, mas Freize o convenceu de que era um péssimo cozinheiro e de que seu amor pela aventura era tão forte que serviria melhor a Deus se acompanhasse um senhor extraordinário numa busca secreta ordenada pelo próprio papa, em vez de queimar o bacon dos monges resignados. O abade, secretamente feliz em se desfazer do noviço trocado pelas fadas, considerou que a perda de um criado propenso a acidentes era um preço pequeno a pagar.

Freize montava um cavalo forte de pernas curtas e guiava um burro carregado com os pertences. Na rectaguarda da procissão, ia um anexo surpresa à parceria: um clérigo, o irmão Peter, que, em cima da hora, recebeu ordem de viajar com eles e manter um registo do trabalho. Um espião, murmurou Freize pelo canto da boca. Um espião, se é que já vi um. Pálido, de mãos macias, com olhos castanhos e crédulos. Tem a cabeça rapada de um monge, mas os trajes de um cavalheiro. Um espião, sem dúvida». In Philippe Gregory, O Substituto, 2012, Editora Galera Record, Colecção Ordem da Escuridão, 2015, ISBN 978-850-140-319-3.

Cortesia de EGRecord/JDACT

Itália, Século XV, JDACT, Literatura, Philippa Gregory,