quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

O Périplo de Baldassare. Amin Maalouf. « Esta obra acaba de ser impressa em Moscovo há alguns meses. E já todos aqueles que sabem ler a leram. Indicou-me com o dedo o título em caracteres cirílicos, e pôs-se a recitar com fervor…»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Centésimo Nome

«(…) Ao dizer isto, passeava o olhar pela loja, procurando sondar aquela confusão de livros, de estatuetas antigas, de objectos de vidro, de vasos pintados, de falcões empalhados; e perguntando-se, a si mesmo, mas poderia muito bem exprimi-lo em voz alta, se, não estando já o meu pai, eu poderia ser apesar de tudo de alguma ajuda. Eu tinha já vinte e três anos, mas a minha cara, redondinha e barbeada, devia ter ainda reflexos infantis. Eu tinha-me erguido, com o queixo espetado. O meu nome é Baldassare, fui eu que lhe sucedi. O meu visitante não deu qualquer sinal de me ter ouvido. Continuava a passear o olhar pelas mil maravilhas que o rodeavam, com um misto de encanto e de angústia. De todas as lojas de curiosidades, a nossa era, desde há cem anos, a mais bem fornecida e a mais conceituada do Oriente. Vinham procurar-nos de todos os lugares, de Marselha, de Londres, de Colónia, de Ancona, como de Esmirna, do Cairo e de Ispahan. Depois de me medir uma vez mais com o olhar, o meu russo deve ter-se conformado. Sou Evdokime Nikolaevitch. Venho de Voronej. Elogiaram-me muito a sua casa. Assumi imediatamente o ar da confidência, era essa, então, a minha maneira de ser afável. Estamos neste comércio há quatro gerações. A minha família é de Génova, mas há muito tempo que se instalou no Levante...

Ele abanou várias vezes a cabeça, querendo dizer que sabia tudo isso. Na verdade, se lhe tinham falado de nós em Constantinopla, era a primeira coisa de que deviam tê-lo informado. Os últimos genoveses nesta parte do mundo... Com algum epíteto, algum gesto evocador de loucura ou uma extrema originalidade transmitida desde sempre de pai para filho. Eu sorri e calei-me. Ele voltou-se imediatamente para a porta, gritando um nome e uma ordem. Apareceu um criado, um homenzinho corpulento de fato negro entufado, com um gorro direito na cabeça, e os olhos no chão. Trazia uma caixa cuja tampa levantou para dela retirar um livro, que estendeu ao seu senhor. Julguei que tinha a intenção de mo vender, e fiquei imediatamente de pé atrás. No comércio de curiosidades, muito cedo aprendemos a desconfiar dessas personagens que chegam com ares importantes, declinam a sua genealogia e as suas nobres relações, distribuem ordens à esquerda e à direita, e que, no fim de contas, só nos querem vender um qualquer traste venerável. Único para eles, e portanto, por via de consequência, único no mundo, não é verdade? Se lhes propomos algum preço que não corresponda àquele que tinham imaginado, melindram-se, dizem-se não apenas explorados, mas insultados. E acabam por se afastar proferindo ameaças. O meu visitante não tardaria a tranquilizar-me: não estava em minha casa nem para vender nem para regatear.

Esta obra acaba de ser impressa em Moscovo há alguns meses. E já todos aqueles que sabem ler a leram. Indicou-me com o dedo o título em caracteres cirílicos, e pôs-se a recitar com fervor: Kniga o vere..., antes de se lembrar de que era preciso traduzir: O Livro da Fé una, verdadeira e ortodoxa. Olhou-me pelo canto do olho para ver se essa formulação fizera ferver o meu sangue de papista. Eu estava impassível. Tanto por fora como por dentro. Por fora o sorriso polido do mercador. Por dentro o sorriso trocista do céptico. Este livro anuncia que o apocalipse está às nossas portas! Indicou-me uma página, perto do fim. Está aqui escrito com todas as letras que o Anticristo aparecerá, de acordo com as Escrituras, no ano do Papa de 1666. Repetiu este número por quatro ou cinco vezes, ocultando de cada vez um pouco mais o mil do início. Depois observou-me, esperando as minhas reacções. Eu tinha, como toda a gente, lido o Apocalipse de João, e tinha-me detido por momentos nessas frases misteriosas do décimo terceiro capítulo: Que aquele que tem a inteligência conte o número da Besta. Porque o seu número é um número de homem e o seu número é seiscentos e sessenta e seis. Está escrito 666 e não 1666, sugeri eu timidamente. É preciso ser cego para não ver um sinal tão evidente!» In Amin Maalouf, O Périplo de Baldassare, 2000, Editora Difel, 2001, ISBN 978-972-290-884-9.

Cortesia de EDifel/JDACT

JDACT, Amin Maalouf, Literatura,