segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

O Lance de Vénus. Steven Saylor. «Por entre as pestanas pintadas de preto com antimónio, detectei um brilho de apreensão. Fiz sinal a Belbo, que trouxe um par de cadeiras dobráveis e as colocou diante da minha»

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«Estão ali dois visitantes, Senhor. Belbo olhava para mim de sobrolho franzido, transferindo o peso do corpo de uma perna para a outra, indeciso. Como se chamam? Não quiseram dizer. São caras conhecidas? Eu nunca os tinha visto, Senhor. Disseram o que queriam? Não, Senhor. Ponderei o assunto por momentos, contemplando as chamas da braseira. Estou a ver. Dois homens... Não exactamente, Senhor... Dois visitantes, disseste tu. São dois homens ou não? Bem disse Belbo, franzindo a testa, tenho quase a certeza de que um deles é um homem. Pelo menos parece... E o outro? É uma mulher acho eu. Ou talvez não... Olhou pensativo, mas pouco preocupado, para meia distância, como se estivesse a tentar recordar-se daquilo que tinha comido ao pequeno-almoço. Eu ergui uma sobrancelha e olhei para além da braseira em chamas; pela janela estreita, avistei o jardim, onde a estátua de Minerva vigiava um pequeno tanque com peixes. O Sol começava a baixar. Em Januaríus, os dias são muito pequenos, em especial para um homem de cinquenta e quatro anos, como eu, com idade bastante para sentir o frio nos ossos. Mas a luz do dia ainda era suficiente para se ver com clareza, e certamente permitiria perceber se a pessoa que nos tinha batido à porta era um homem ou uma mulher. Teria Belbo começado a ver mal?

Belbo não será o mais inteligente dos escravos. Mas sempre compensou em volume aquilo que lhe falta em cérebro. Há muito tempo que esta massa imensa de músculos protuberantes e cabelo cor de palha é o meu guarda-costas, embora nos últimos anos os seus reflexos se tenham tornado consideravelmente mais lentos. Eu tinha pensado começar a usá-lo como porteiro, considerando que o facto de ter passado muitos anos ao meu serviço lhe permitiria reconhecer a maioria das pessoas que me visitavam, e que o seu tamanho intimidaria aqueles que não reconhecesse. Mas se ele nem conseguia distinguir um homem de uma mulher, dificilmente poderia tê-lo à porta. Belbo terminou a sua ponderação de meia distância e pigarreou. Mando-os entrar, Senhor?

Deixa-me ver se compreendi o que disseste: dos estranhos de sexo indeterminado, que se recusam a dizer o nome, vieram bater à porta de um homem que passou a vida a granjear inimigos, aqui, na cidade mais perigosa do mundo. Mandá-los entrar, perguntas tu? Por que não? Ao que parece, o meu sarcasmo foi excessivamente subtil. Belbo acenou com a cabeça e saiu da sala antes que eu pudesse detê-lo. Momentos depois, regressou com os visitantes. Eu levantei-me para os receber, e percebi que os olhos de Belbo continuavam tão perspicazes como sempre, provavelmente mais do que os meus. Se eu tivesse visto este casal do outro lado da rua ou a atravessar o Fórum, talvez tivesse pensado que eram exactamente aquilo que pareciam, um homem de feições delicadas, razoavelmente jovem, vestindo uma toga que lhe caía mal e com um chapéu de abas largas (apesar do tempo encoberto), e uma mulher bastante mais velha e corpulenta, envolvida numa estola que a cobria modestamente da cabeça aos pés. Contudo, se analisados com maior cuidado, percebia-se que havia ali qualquer coisa que não jogava bem.

Eu não conseguia ver nenhuma parte do corpo do homem mais novo, escondido pelas pregas amplas da toga, que era grande demais para ele, mas o seu rosto não era como devia ser; não vi sinais de barba nas faces e as suas mãos suaves e cuidadosamente tratadas moviam-se com uma delicadeza nada masculina. Por outro lado, o seu cabelo parecia ter sido puxado para cima e metido por baixo do chapéu, em vez de cair por trás das orelhas e sobre o pescoço, o que significava que devia ser excepcionalmente comprido. Além disso, tinha uma cor estranha era escuro nas raízes e louro na zona onde estava virado para cima, à volta da aba do chapéu, que ele se recusou a tirar.

Quanto à mulher, uma manta de lã enrolada à volta da cabeça obscurecia a maior parte do seu rosto, mas eu percebi que ela pintara as faces, de forma um tanto atabalhoada, com uma tinta de maquilhagem cor-de-rosa. As rugas do pescoço caíam-lhe em pregas consideravelmente mais frouxas do que as pregas da estola, que lutavam para conter o seu volume, especialmente a meio do tronco. Os seus ombros pareciam um tanto largos de mais e as coxas excessivamente estreitas. E as suas mãos também não pareciam adequadas, porque as matronas romanas têm orgulho na sua pele clara, e as dela eram escuras e estragadas, como se tivessem estado expostas ao sol durante muitos anos; por outro lado, se era de esperar que qualquer mulher suficientemente vaidosa para pintar o rosto também cuidasse das unhas, as da minha visitante estavam partidas e roídas até ao sabugo. O casal manteve-se mudo ao lado da braseira. Creio que vieram visitar-me disse eu por fim. Eles limitaram-se a acenar com a cabeça. O homem mais jovem franziu os lábios e olhou para mim com uma expressão tensa. A mulher mais velha inclinou a cabeça, de tal maneira que a braseira lhe iluminou os lábios. Por entre as pestanas pintadas de preto com antimónio, detectei um brilho de apreensão. Fiz sinal a Belbo, que trouxe um par de cadeiras dobráveis e as colocou diante da minha». In Steven Saylor, O Lance de Vénus, 1995, Bertrand Editora, 2002, ISBN 978-972-252-229-8.

Cortesia de Bertrand E/JDACT

JDACT, Steven Saylor, Cultura e Conhecimento,