segunda-feira, 11 de abril de 2011

Carla Alferes Pinto: A Infanta dona Maria de Portugal, o Mecenato de uma Princesa Renascentista. Parte II. «O século XVIII, influenciado talvez pelos ideais iluministas, coloca a ênfase na erudição de D. Maria criando o mito de uma «universidade feminina» dirigida sob a égide da Infanta. O século seguinte não produziu texto algum específico sobre a Infanta e as menções a ela feitas incluem-se em obras sobre instituições educativas e sobre Camões»

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«Foi em Damião de Góis e João de Barros que encontrámos as primeiras palavras elogiosas dirigidas à Infanta. Damião de Góis, enquanto cronista oficial de seu pai, limita-se a referir a imensa fortuna de D. Maria. Barros, no seu extenso Panegírico de oitenta capítulos, fornece-nos importantes dados para a compreensão e formação da personalidade de D. Maria, dizendo-nos que o profundo estudo da língua latina que a Infanta praticou se deveu à necessidade de ler os Doutores da Igreja e as Sagradas Escrituras. Existe, sem dúvida, um exagero da parte de João de Barros nestas afirmações. A sua ideia seria a de enaltecer a inteligência e estudo de D. Maria mais que o fervor religioso e, de qualquer forma, este texto foi escrito para comemorar o facto de a Infanta se tornar Senhora de Viseu, cidade da qual Barros era natural.

O elogio de João de Barros surge-nos precocemente, revelando as preocupações humanistas que eram também as suas, mas historiando sem material, sem o devido distanciamento temporal necessário a uma análise mais objectiva. Esta falta de objectividade agrava-se no período filipino, do qual datam os relatos seguintes: Pedro Mariz nos seus Dialogos de vária história (1594), Duarte Nunes de Leão na sua Descrição do Reino de Portugal (1610) ou frei Luís dos Anjos no seu Jardim de Portugal (1626).

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Mencionam uma remota imagem de virtude, riqueza e erudição, que sendo verdadeira, adquire contornos de exaltação piedosa. Frei Miguel Pacheco iniciou uma nova etapa na produção historiográfica sobre a figura da Infanta, com propósitos políticos opostos, ou seja, a legitimação da nova dinastia de Bragança, mas que vai acentuar a ideia de redução do papel da mulher às virtudes «feminis». Em 1675 foi dada à estampa, postumamente, a muito «sui generis» obra de Pacheco. Na «Vida de la Serenissima Infanta Doña Maria», uma das primeiras biografias escritas sobre personagens portuguesas e seguramente precoce no que diz respeito a mulheres, foi feito um relato bastante pormenorizado dos passos da vida da protagonista, acompanhada por comentários e referências constantes a textos clássicos, nomeadamente citações da Bíblia e de autores cristãos e romanos.
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Para além das citações e exageros de teor religioso, que conferem ao texto um carácter de apologética hagiográfica, Pacheco teve acesso a algumas fontes que interpretou de forma a «criar» a lenda da desventurosa vida da Infanta, sempre preterida pelo irmão. Mas, afinal, e pondo de parte as suas considerações contra-reformistas, os dados crus que nos apresenta não falam mais do que das justificadas razões de Estado e do comportamento comum aos membros das famílias reais e nobres do século XVI. Esta imagem desfocada que Pacheco gerou teve larga fortuna, mantendo-se inalterável até aos nossos dias.

Mas o interesse por este livro não se esgota aqui: é oferecido por Frei Lourenço Saro, prior-geral da Ordem de Cristo à infanta D. Isabel Maria Josefa, para que se fizesse «publica memoria das insignes virtudes da serenissirna Infanta D. Maria, ramo aureo da Real aruore dos senhores Reys de Portugal, esclarecidos progenitores de V Alteza». Ironicamente, a figura e vida da infanta D. Maria serve quase cem anos depois da sua morte para legitimar uma nova casa real.

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O século XVIII, influenciado talvez pelos ideais iluministas, coloca a ênfase na erudição de D. Maria criando o mito de uma «universidade feminina» dirigida sob a égide da Infanta. O século seguinte não produziu texto algum específico sobre a Infanta e as menções a ela feitas incluem-se em obras sobre instituições educativas e sobre Camões. As excepções encontram-se num poema de Júlio de Castilho intitulado «A Infanta» e inserido nas suas «Manuelinas (1899)» e num pequeno opúsculo espanhol da mesma data chamado «Tres princesas lusitanas», de Francisco de Paula Villa-Real yValdivia. Neste texto há uma mistura entre factos verdadeiros, provavelmente colhidos no livro de Frei Miguel Pacheco, e a lenda, sempre sob a capa enaltecedora da religiosidade e virtudes inerentes às mulheres oitocentistas.

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Logo no início do século XX, em 1902, foi publicado o livro de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, «A Infanta D. Maria de Portugal e as suas Damas» que, com uma fundamentação histórica preciosa, tratou os aspectos culturais da vida e acção de D. Maria e do círculo de damas doutas com quem conviveu, na qual se incluíam os nomes de Luísa e Ângela Sigeia, Hortênsia de Castro, Joana Vaz, as irmãs Gusmão, etc. A imagem da Infanta começou a ser essencialmente alterada pelos dados históricos e biográficos que a autora desenvolveu, nomeadamente no que respeitava aos contributos que forneceu nas áreas da literatura, da formação e da valorização do papel cultural e político da mulher no século XVI.

Algumas das afirmações e certezas que a autora produziu no início do século estão hoje sujeitas a revisão, designadamente a imagem de extrema piedade que a autora não apaga, mas foram um ponto de partida essencial para a execução deste trabalho. A monografia de Carolina Michaëlis de Vasconcelos teve reflexos muito importantes na produção historiográfica de e sobre mulheres neste século. Com efeito, surgiram uma série de ecos desta publicação, infelizmente incapazes de manter a linha inovadora e reabilitante da figura da Infanta que a estudiosa alemã iniciara. As excepções encontram-se em cinco ou seis autores». In A Infanta dona Maria de Portugal, o Mecenato de uma Princesa Renascentista, Fundação Oriente, ISBN 972-9440-90-5.

Cortesia da Fundação Oriente/JDACT