segunda-feira, 11 de abril de 2011

Manuel Poppe. Feliciano Falcão, Memória Viva: «Lancelote e o Nevoeiro... Reli, há pouco, o Doutor Jivago. E apareceu-me a sua extraordinária aventura, durante anos de João Semana, em Alegrete, e muitos outros anos a interrogar e a interrogar-se, na capital do periférico Alto Alentejo, a informar-se, a referir-se, a indignar-se e a intervir»

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«... Jacob Ben Isaac disse: «a Torah ensina-nos, quando um justo deixa a cidade, a beleza da cidade parte com ele. A luz do justo é a beleza e a luz da cidade». Essa luz, aquela que só ele irradiava, levou-a consigo. Para nunca mais. Resta o sinal, a marca que deixou. Feliciano Falcão era um humanista; homem de prol; poeta e «um santo sem crença, uma verdade Divina sem Deus», escreveria Alberto Marques Cardoso, seu colega de universidade e amigo da vida toda. Um santo laico. Sem Deus? Que importa? Que vale a pergunta, diante de homens como ele? Se Deus não lhe esteve ao lado, a culpa foi de Deus. E estava, sim, porque Feliciano Falcão é a imagem mais transparente, no amor aos outros, na intuição e compreensão do tumulto dos outros, da tragédia e da aventura maravilhosa de cada destino.
O doce calor que desprendia testemunhava da presença invisível do transcendente.

Manuel Poppe
Cortesia de teatromunicipaldaguarda

Levei-o a Assis e aquela alma, aquele comunista ideal, marxista, racionalista da Utopia, comoveu-se em frente ao túmulo do poverello, à maneira do que realmente era:
  • poeta,
  • idealista,
  • sonhador de pés assentes na terra.
No exemplo de S. Francisco e na suave poesia  dos Fioretti, reencontrava o seu imenso amor à vida, às coisas mais simples e, no entanto, mais significativas dela, tais as flores, as cores, o infinito alentejano. Complementarmente, vibrava com Torga e apreciava Bonnard. Mas entendia Régio e, por consequência, o abismo.
Exerceu, num círculo restrito, actividade pedagógica preciosa; ofereceu o exemplo da própria generosidade humilde e os conhecimentos, aberto ao debate, à consideração pelos contrários.

Cortesia defalcaodejade
Reli, há pouco, o Doutor Jivago. E apareceu-me a extraordinária aventura de Feliciano Falcão, durante anos João Semana, em Alegrete, e muitos outros anos a interrogar e a interrogar-se, na capital do periférico Alto Alentejo, a informar-se, a referir-se, a indignar-se e a intervir.
Porque a sua vida representou um desafio exemplar, à fome de justiça, acrescentava a exigência do respeito ao Indivíduo, que tinha como Único. Tal qual Jivago, seu irmão, em mais de um aspecto:
  • na sensibilidade poética,
  • na capacidade profissional,
  • na esperança.
Cavaleiro de uma Távola Redonda sonhada e querida, sacrificou-se, em tempo de nevoeiro, de trevas. Lancelote intrépito, que desafiava as estrelas, dentro do coração meigo; que interpelava os fariseus e reclamava o Bem, representa o exemplo de quanto pode o mal:
  • limitar o espaço do Indivíduo,
  • obrigá-lo à luta inglória e interminável contra o risco constante de acordar deformado, amputado, falsificado. De 1926 a 1974, viveram praticamente, assim, todos os portugueses.
E o que surpreende e entusiasma é que Feliciano Falcão nunca quebrou, foi até ao fim, o mesmo discípulo de Terência, que constantemente referia:
  • Homo sum: humani hihil a me alienum puto (Sou homem e nada do humano me é estranho).
Nunca perdeu de vista o trágico quotidiano, nem o Sonho, mola real da vida viva». In Feliciano Falcão, Memória Viva. António Ventura. Edições Colibri, CMPortalegre, 2003, ISBN 972-772-440-X.

Cortesia de Edições Colibri/CMPortalegre/JDACT