domingo, 12 de junho de 2011

Augusta Isabel Falcão: Feliciano Falcão, Memória Viva: «Era também um homem generoso. As suas generosidades fê-las com grande discrição, quer no seu laboratório de análises clínicas,enternecendo-se facilmente com aqueles para quem a vida era hostil, quer ajudando os amigos, como é o caso de José Régio, de quem era admirador incondicional»

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Recordando Feliciano Falcão.
Não é fácil escrever sobre um homem de grande erudição, com quem tive a sorte de privar e por quem sinto um grande carinho. Pegar em todas as memórias que dele tenho e seleccioná-las torna este momento doloroso e simultaneamente gratificante. As suas palavras continuam vivas. O tempo não as desactualizou. Elas expressam, a par da cultura, uma evidente consciência cívica e social. o seu amor à liberdade e à justiça granjearam-lhe, no entanto, alguns dissabores, algumas incompreensões. Deslumbrou-se com os grandes da literatura, da escultura, da música, da pintura... que lhe suscitavam toda a gama de emoções, de sentimentos. Dentro de si coabitavam muitos entusiasmos. «A vida é feita de espaços e geometria, não só de linhas. As pessoas têm que ter franjas, aberturas, porque a vida é uma aprendizagem permanente», comentava.
Sempre atento às inquietações da juventude, sempre receptivo e incentivando os jovens, dizia-lhes frequentemente «se não sentimos impaciência por nada, situamo-nos à margem da vida». Homem extremamente coeso e digno. Homem singular, em que se aliavam o humor e a lucidez intelectual. Alimentava com entusiasmo as ilusões dos seus interlocutores, despertando-lhes inquietações, a chamá-los «à plenitude do ego».

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Os fins-de-semana, na sua quinta da Serra, eram uma festa. os meus horizontes alargavam-se a seu lado. Ouvia atentamente o seu solilóquio, que fluía com facilidade e profundidade. Foram momentos únicos, irrepetíveis de descoberta, de confronto, de beleza.... Ele foi, durante muito tempo, o pólo cultural de Portalegre. Era em seu redor que os serões ganhavam matizes e se afastavam do vulgar quotidiano. Se o que define a juventude é o seu encanto, a sua inadaptação, a sua rebeldia, a sua ânsia de saber, posso dizer que Feliciano Falcão não envelheceu. o seu espírito permaneceu jovem, até ao fim.
A vertigem superficial do quotidiano faz de nós desconhecidos conviventes e quantas vezes indiferentes ao que acontece de belo ao nosso ladô! Não nasce o homem, faz-se. Assim este homem foi evoluindo, foi construindo o seu saber, à custa de muitas noites mal dormidas, rodeado dos seus livros, da sua música, olhando os seus quadros de que fruía até ao mínimo pormenor.
Não dispensou nunca o convívio com os seus amigos, que o acompanhavam nas divagações pelo mundo da estética, da política, do humanismo. Ele é a minha referência cultural. Devo-lhe muito da minha formação. Estou a vê-lo a transbordar de entusiasmo, com o seu olhar transparente, a querer fazer partilhar com os outros a sua exigência por uma vida polifacetada, plasmada nos saberes universais. Era um humanista, um idealista.

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Era também um homem generoso. As suas generosidades fê-las com grande discrição, quer no seu laboratório de análises clínicas,enternecendo-se facilmente com aqueles para quem a vida era hostil, quer ajudando os amigos, como é o caso de José Régio, de quem era admirador incondicional. Dele falava com grande entusiasmo e muitas vezes o ouvi lamentar a falta de projecção dada ao seu amigo Reis Pereira.
Bento de Jesus Caraça era outra figura que venerava. Considerava-o «seu mestre de humanismo». Entusiasmava-o a sua personalidade poliédrica, o seu amor à Arte em todos os seus meandros. Atento ao fim que se aproximava e invadido por um sentimento de angústia, chega a uma conclusão desconcertante: já não se importava de viver uma vida «morninha». Estava junto dos seus, principalmente da sua mulher, da sua «Baki», e isso lhe bastava, lhe preenchia os dias outonais com um carinho feito de cumplicidades, ao longo de uma vida vivida no requinte da cultura. O seu amor era um amor para além do amor». In Feliciano Falcão, Memória Viva, António Ventura, Edições Colibri, C. M. de Portalegre, 2003, ISBN 972-772-440-X.

Cortesia de Edições Colibri/JDACT