sexta-feira, 17 de junho de 2011

José Saramago. Ensaio sobre a Lucidez: Parte I. «Há quem opine que o melhor de tudo seria não espetar a vara nas costelas do bicho, deixar as coisas como estão, o (…) no governo, o (…) na câmara municipal, fazer de conta que não aconteceu nada, imaginar, por exemplo, que foi declarado o estado de excepção na capital e que por conseguinte se encontram suspensas as garantias constitucionais...»

Cortesia de recreiodasletraswordpress

«O desconcerto, a estupefacção, mas também a troça e o sarcasmo, varreram o país de lés a lés. Os municípios da província, onde a eleição havia decorrido sem acidentes nem sobressaltos, salvo um ou outro atraso ligeiro ocasionado pelo mau tempo, e que haviam obtido resultados que não se diferenciavam dos de sempre, uns tantos votantes certos, uns tantos abstencionistas empedernidos, nulos e brancos sem significado especial, esses municípios, que o triunfalismo centralista tinha humilhado quando se pavoneou perante o país como exemplo do mais lídimo civismo eleitoral, podiam agora devolver a bofetada à procedência e rir da estulta presunção de uns quantos senhores que julgam levar o rei na barriga só porque uma casualidade os fez ir viver na capital. As palavras «Esses senhores», pronunciadas com um movimento de lábios que ressumbrava desdém em cada sílaba, para não dizer em cada letra, não se dirigiam às pessoas que, tendo permanecido em casa até às quatro horas, de repente acudiram a votar como se tivessem recebido uma ordem a que não haviam podido resistir, apontavam, sim, ao governo que embandeirara em arco antes de tempo, aos partidos que já tinham começado a jogar com os votos em branco como se fossem uma vinha por vindimar e eles os vindimadores, aos jornais e mais meios de comunicação social pela facilidade com que passam dos aplausos do capitólio às precipitações da rocha tarpeia, como se eles próprios não fossem uma parte activa na preparação dos desastres.

Cortesia de jakelinemagna

Alguma razão tinham os zombadores da província, porém não tanta quanto criam. Por baixo da agitação política que percorre toda a capital como um rastilho de pólvora à procura da sua bomba percebe-se uma inquietação que evita manifestar-se em voz alta, salvo se se estiver entre pares, uma pessoa com os seus íntimos, um partido com o seu aparelho, o governo consigo mesmo, Que irá suceder quando a eleição for repetida, esta é a pergunta que todos vão fazendo em voz baixa, contida, segredada, para não despertar o dragão que dorme. Há quem opine que o melhor de tudo seria não espetar a vara nas costelas do bicho, deixar as coisas como estão, o (…) no governo, o (…) na câmara municipal, fazer de conta que não aconteceu nada, imaginar, por exemplo, que foi declarado o estado de excepção na capital e que por conseguinte se encontram suspensas as garantias constitucionais, e, passado um tempo, quando a poeira tiver assentado, quando o nefasto sucesso tiver entrado no rol dos pretéritos esquecidos, então, sim, preparar as novas eleições, principiando por uma bem estudada campanha eleitoral, rica de juramentos e promessas, ao mesmo tempo que se trataria de prevenir por todos os meios, e sem torcer o nariz a qualquer pequena ou média ilegalidade, a possibilidade de que se pudesse dar a repetição de um fenómeno que já mereceu de um reputadíssimo especialista nestas matérias a dura classificação de teratologia político-social.

Cortesia de livrosemlinha

Também há os que expressam uma opinião diferente, protestam que as leis são sagradas, que o que está escrito é para se cumprir, doa a quem doer, e que se entramos pela vereda dos subterfúgios e pelo atalho dos arranjinhos por baixo da mesa iremos direitos ao caos e à dissolução das consciências, em suma, se a lei estipula que em caso de catástrofe natural as eleições devem ser repetidas oito dias depois, então que se repitam oito dias depois, isto é, já no próximo domingo, e seja o que deus quiser, que para isso está. Nota-se, no entanto, que os partidos, ao expressarem os seus pontos de vista, preferem não arriscar demasiado, dão uma no cravo, outra na ferradura, dizem que sim, mas que também. Os dirigentes do partido da direita, que está no governo e ocupa a câmara municipal, partem da convicção de que esse trunfo, indiscutível, dizem eles, lhes porá a vitória numa bandeja de prata, e assim adoptaram uma táctica de serenidade tingida de tacto diplomático, confiando-se ao são critério do governo, a quem incumbe fazer cumprir a lei, Como é lógico e natural numa democracia consolidada, tal a nossa, remataram. Os do partido do meio também pretendem que a lei seja respeitada, mas reclamam do governo algo que de antemão sabem ser totalmente impossível satisfazer, isto é, o estabelecimento e a aplicação de medidas rigorosas que assegurem a normalidade absoluta do acto eleitoral, mas, sobretudo, imagine-se, dos seus respectivos resultados, De modo que nesta cidade, alegaram, não possa repetir-se o vergonhoso espectáculo que acabou de dar à pátria e ao mundo. Quanto ao partido da esquerda, depois de reunidos os seus máximos órgãos directivos e após um longo debate, elaborou e tornou público um comunicado em que expressava a sua mais firme esperança de que o acto eleitoral que se avizinha irá fazer nascer, objectivamente, as condições políticas indispensáveis ao advento de uma nova etapa de desenvolvimento e amplo progresso social». In José Saramago, Ensaio sobre a Lucidez, Caminho o Campo da Palavra, 2004, ISBN 972-21-1608-8.

Cortesia de Caminho/JDACT