terça-feira, 7 de junho de 2011

José Mattoso. Naquele Tempo: Ensaios de História Medieval. «De facto, a Igreja medieval parece contentar-se com a imposição de uma forma de casamento legítimo que evidencie a intervenção do ministro sagrado, com o combate à promiscuidade e com a estabilidade matrimonial, mas deixa à família e à comunidade laica o cuidado de prepararem os jovens para a vida sexual»


Cortesia de enciclopedia

O Corpo, o Sangue e as Lágrimas
A moral clerical e a sua evolução.
«Como definiremos, então, os conceitos e as normas da moral clerical e da moral (ou morais) «dissidente»?
Quanto à primeira, convém não nos contentarmos com aquilo que a Igreja se habituou a proclamar: que a sua doutrina moral não teria sofrido evolução alguma desde as origens até à actualidade. Quando muito, a Igreja teria descoberto, a pouco e pouco, expressões cada vez mais detalhadas e mais explícitas de prescrições que estariam implicitamente contidas nos preceitos evangélicos. A realidade histórica é bem diferente.
Para se perceber a evolução nesta matéria, bastará referir alguns factos de maneira esquemática. Assim, o celibato eclesiástico só se impõe como norma geral no século XII, e continua a ser esquecido com grande frequência até ao século XVI. O divórcio é previsto e autorizado nos costumes municipais e estes continuam a ser copiados e praticados, sobretudo nas terras do interior, pelo menos até ao século XIV, com a tolerância das autoridades eclesiásticas.


Cortesia de escolajacydeassis

A barregania foi provavelmente um costume quase constante na alta Idade Média para os jovens nobres antes do casamento; confundia-se frequentemente com o sacramento de facto em todas as classes sociais, e só foi propriamente combatida quando implicava uniões de cônjuges de condição social desigual e quando envolvia clérigos (depois do século XII) e homens casados legitimamente. O casamento só foi considerado um sacramento, depois do século XI; tardou séculos a generalizar-se como cerimónia litúrgica imposta a todos os fiéis. O casamento de facto e o casamento privado (ou casamento de «juras») eram considerados legítimos, praticaram-se sem oposição da Igreja até ao concílio de Trento, e continuaram a ser a forma mais corrente da união matrimonial entre as classes populares até à mesma época. A proibição de relações pré-matrimoniais era normalmente apresentada como uma recomendação e um ideal e não como um pecado grave.

Os actos considerados ilícitos pelos manuais de confessores da Idade Média são de natureza propriamente genital; desconhecem a condenação de carícias e de outros contactos corporais. A noção primitiva de pecado sexual, sobretudo o previsto nos penitenciais mais antigos, implica a ideia de infracção de um interdito de natureza sacral e quase mágica provocado pela efusão de sémen, mas não parece envolver as práticas que eventualmente a evitem, mesmo de carácter erótico.

Cortesia de mertolaconcelho

Limites da permissividade.
Este conjunto de factos, cujo conhecimento se tem vindo a confirmar recentemente, mostra que é grande a distância que medeia entre a atitude prática da Igreja para com os leigos nos séculos X ou XI e a que ela veio a adoptar a partir do século XVI. Aquela baseava-se numa severa condenação do adultério, mas não pretendia instaurar uma tutela exclusiva sobre matérias que eram regulamentadas pelos preceitos das comunidades tradicionais, como seria, sobretudo, a iniciação sexual dos jovens e as práticas destinadas a propiciar ou a regular a fecundidade (excepto o aborto, sobretudo na medida em que implicava a intervenção de acções mágicas), e a relação entre os compromissos matrimoniais e a comunidade em que os seus contraentes se inseriam. De facto, a Igreja medieval parece contentar-se com a imposição de uma forma de casamento legítimo que evidencie a intervenção do ministro sagrado, com o combate à promiscuidade e com a estabilidade matrimonial, mas deixa à família e à comunidade laica o cuidado de prepararem os jovens para a vida sexual. Esta implica provavelmente uma prática que conjuga uma razoável permissividade na iniciação sexual com a tutela intransigente dos pais e parentes na escolha do cônjuge. Mas é também provável que não fossem raras as situações de homens e mulheres que adoptam costumes um tanto diferentes dos que erm tradicionalmente tolerados, embora numa situação de marginalidade». In José Mattoso, Naquele Tempo, Ensaios de História Medieval, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2009, ISBN 978-989-644-052-7.

Cortesia de Temas e Debates/JDACT