sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Camila. A Virgem Guerreira. João Nunes Torrão. «Vindo das casas e dos campos, toda a juventude e uma multidão de mães a admiram e a contemplam no seu desfile, boquiabertos e de espírito estupefacto diante do adorno real que lhe cobre de púrpura os delicados ombros, diante da fíbula de ouro que lhe prende os cabelos…»

Cortesia de wikipedia

«(…) É este carácter sagrado que vai exigir a punição de quem lhe causar a morte e é também por isso que a própria Diana se encarrega de retirar do campo de batalha o corpo inanimado da sua protegida para lhe dar sepultura na sua pátria: Haec cape et ultricem pharetra deprome sagittam: hac, quicumque sacrum uiolarit uolnere corpus, Tros Italusque, mihi pariter det sanguine poenas. Post ego nube caua miserandae corpus et arma inspoliata feram tumulo patriaeque reponam. (Toma estas armas e retira desta aljava uma seta vingadora: que, por meio dela, me pague com o seu sangue quem quer que, Troiano ou Itálico, tiver violado com uma ferida o seu corpo sagrado. Depois, eu mesma, no recôncavo de uma nuvem, levarei o corpo da desventurada e as armas de que não será despojada e a hei-de depor num túmulo, na sua pátria). Assim, Arrunte terá de morrer às mãos de Ópis, lugar-tenente de Diana, logo após a morte de Camila. É interessante constatar o afastamento da deusa na altura das mortes de Camila e de Arrunte, como que a querer significar que uma imortal não se pode contaminar, com o bafejo sequer, da morte. O mesmo se passa, de maneira ainda mais explícita, no Hipólito de Euripides, onde Ártemis, quando se aproxima o momento da morte do seu protegido, se retira e diz: Adeus! A mim não me é lícito ver pessoas mortas, nem os olhos manchar diante dos mortais que soltam o último suspiro. Ora, já que se trata do comportamento dos deuses, poderemos apontar outra semelhança entre o episódio de Camila e o Hipólito de Euripides : em ambos os casos, os deuses não interferem nas realizações de outras divindades. No caso de Camila, Diana não vai contra os fata que condenam a sua protegida e, mais tarde, Apolo não concede a Arrunte o regresso à pátria, porque iria interferir com a condenação a que Diana o votou. No Hipólito, Artemis diz que um deus não interfere nos propósitos dos outros deuses.
Mas há uma outra característica que, desde a primeira apresentação de Camila, no final do catálogo das forças itálicas, nos faz olhar para ela como um ser sobrenatural. Trata-se, evidentemente, da sua extraordinária velocidade, para a qual poderemos encontrar uma predestinação no voo sobre o Amaseno: Ela voaria sobre o cimo verdejante de uma seara sem lhe tocar e sem danificar, na sua corrida, as tenras espigas, ou, suspensa nas ondas encapeladas, caminharia sobre o mar, sem molhar na superfície líquida as plantas dos seus pés velozes. É esta sua velocidade que, depois de ter sido ludibriada pelas artimanhas do guerreiro, lhe vai permitir vingar-se do filho de Auno, quando consegue ultrapassar o galope fugitivo do cavalo do Lígure. Todas estas características, pelo seu aspecto sobre-humano, nos apresentam uma jovem brilhante e cheia de luz. Será que esta intensa luminosidade se vai manter nos aspectos puramente humanos? A resposta é afirmativa, ainda que tenhamos de colocar algumas restrições. A aparição de Camila, ao terminar o catálogo das forças aliadas de Turno, é tão esplendente que causa assombro às mulheres e aos jovens que contemplam com admiração o seu manto de púrpura, descaído pelas costas, a fíbula de ouro a adornar-lhe os cabelos e o seu porte altivo no comando das tropas: Vindo das casas e dos campos, toda a juventude e uma multidão de mães a admiram e a contemplam no seu desfile, boquiabertos e de espírito estupefacto diante do adorno real que lhe cobre de púrpura os delicados ombros, diante da fíbula de ouro que lhe prende os cabelos e ao verem como leva a aljava lícia e o mirto pastoril, arvorando-o na ponta de uma lança.
É com este pormenor das roupagens de Camila que Virgílio termina o canto VII do Poema e nos deixa com uma visão de maravilha e garridice, mas também de vaidade feminina que pressagia o desenlace fatal. Mas é no combate que esta figura vai receber ainda maior lustre. A virgem, desde sempre habituada a proelia dura pati apresenta-se a Turno cheia de confiança em si própria e chega mesmo a propor-se para ir, apenas com as suas tropas, defrontar as forças de Eneias que, dizia-se, se aproximava de modo ameaçador da cidade: Turno, se a coragem deve ter, com razão, alguma confiança em si própria, eu ouso, e prometo-te, marchar contra o esquadrão dos Enéadas, e sozinha enfrentar os cavaleiros tirrenos. Turno, porém, possuía dados mais completos sobre a situação militar e não aceita esta proposta, mas a autoconfiança de Camila vai ter oportunidade de ser confirmada e assume tal significado, que Júpiter tem de intervir para incitar Tárcon ao combate e assim restabelecer o equilíbrio de forças. Este aspecto luminoso vai lançar ainda alguns lampejos nos momentos finais da heroína. Com efeito, apesar de disposta a viver mais tempo, ainda tenta arrancar a lança que, fatal, a atingiu, encara a morte com calma. É esta calma que lhe permite preocupar-se com os outros, nomeadamente através do envio de uma mensagem militar a Turno. Só depois deste aviso a Turno é que larga as rédeas e se deixa tombar, inanimada, para o solo». In João Manuel Nunes Torrão, Camila, A Virgem Guerreira, Revista Humanitas, volume XLV, 1993, Universidade de Coimbra.

Cortesia da UCoimbra/JDACT