sábado, 20 de dezembro de 2014

Poesia. Mia Couto. «Descobri a vossa intenção; deceptar as minhas raízes mais profundas, obrigar-mr à cerimónia das palavras mortas. Preferi reiniciar-me na solidão»

jdact e wikipedia

No teu rosto
«No teu rosto
competem mil madrugadas.

Nos teus lábios
a raiz do sangue
procura suas pétalas.

A tua beleza
é essa luta de sombras
é o sobressalto da luz
num tremor de água
é a boca da paixão
mordendo o meu sossego».

Fundo do mar
«Quero ver
o fundo do mar
esse lugar
de onde se desprendem as ondas
e se arrancam
os olhos aos corais
e onde a morte beija
o lívido rosto dos afogados.

Quero ver
esse lugar
onde se não vê
para que
sem disfarce
a minha luz se revele
e nesse mundo
descubra a que mundo pertenço»


Morte silenciosa
«A noite cedeu-nos o instinto
para o fundo de nós
imigrou a ave da inquietação.

Serve-nos a vida
mas não nos chega:
somos resina
de um tronco golpeado
para a luz nos abrimos
nos lábios
dessa incurável ferida.

Na suprema felicidade
existe uma morte silenciada»
Poemas de Mia Couto, in ‘Raiz de Orvalho, 1981

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