segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Dona Beatriz Afonso (1244-1300). António Resende Oliveira. «… da gestão dos seus domínios da Estremadura, que nos informam sobre a administração do seu senhorio… As doações que a própria rainha fez em 1283-1284… E é quase tudo»

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Introdução
«Somente nas décadas mais recentes as rainhas emergiram como tema com alguma projecção historiográfica. O Dicionário de História de Portugal, de 1971, dá-nos uma boa ideia da importância então atribuída às rainhas portuguesas. Se das cinco de que se ocupa o presente volume aquele dicionário apenas esquece uma, dona Dulce de Aragão, a três das quatro restantes dedica um espaço irrisório: nove linhas a dona Mafalda e a dona Urraca, três linhas a dona Beatriz. Apenas dona Mecia parece merecer atenção privilegiada, com a síntese biográfica, a cargo de Oliveira Marques, a ocupar cerca de coluna e meia. Mas dona Mecia, apesar de uma biografia marcada por alguns acontecimentos picarescos, foi uma rainha episódica, obrigada a regressar a Castela com Sancho II, pouco depois de com ele ter casado. Já as restantes ocuparam o trono durante períodos mais ou menos prolongados, em todo o caso durante um mínimo de cerca de doze anos (dona Mafalda e dona Urraca). Se a discrepância de tratamento entre Mecia e as restantes rainhas não é justificável, atendendo, desde logo, ao período de tempo em que cada uma se manteve junto do rei, não o é igualmente pelos estudos já existentes sobre cada uma delas. Por outras palavras, aquela economia de espaço reflectia não tanto um qualquer desconhecimento sobre a vida das rainhas em causa quanto o reduzido interesse que essa vida despertara até aos anos sessenta do século passado. Na realidade, após as Memória das Rainhas de Portugal, de Frederico de la Figanière, obra de 1859, as primeiras rainhas portuguesas tinham beneficiado de sólidas biografias, que recuperavam e depuravam os elementos já conhecidos, acrescentando-lhes muita documentação que permanecera até então inédita.
No que a dona Beatriz de Castela dizia respeito, a entrada do dicionário limitava-se a assinalar a sua condição de mulher de Afonso III e a qualidade de fundadora do Hospital dos Meninos Órfãos de Lisboa. Mas metade desta microbiografìa de dona Beatriz, na parte que diz respeito à pretensa fundação do Hospital de Lisboa, apesar de ela ser já mencionada por frei Francisco Brandão na Monarquia Lusitana, terá sérias dificuldades em ser confirmada documentalmente. Na verdade, é pouco provável que estivesse ligada à fundação de um hospital que existiria quando ela chegou a Portugal e a que Afonso III, um ano após essa chegada, mandava entregar um casal em Verdelha, próximo de Vila Franca de Xira. Deve lembrar-se que dona Beatriz, por essa altura, não teria atingido ainda os 10 anos de idade. Retenha-se, portanto, este traço biográfico que a associava à rede assistencial do território como algo que se foi incorporando no período tardo-medieval como elemento adscrito à matriz funcional das rainhas portugueses mas que, ao que sabemos, não terá tido neste caso qualquer concretização prática.
De dona Beatriz faltam-nos alguns documentos essenciais: os do tratado sobre o Algarve de finais de 1252 ou inícios de 1253, em ligação ao qual o seu casamento foi negociado; o relativo à dotação patrimonial que o rei português lhe fez pela mesma altura; ou o seu testamento, particularmente importante porquanto nos permitiria conhecer as suas últimas vontades e alguns aspectos do seu quotidiano, concretizar ligações com instituições eclesiásticas ou com pessoas do seu círculo familiar ou vassálico. Não beneficiou igualmente, ao contrário da rainha que lhe sucedeu, de qualquer resenha biográfica coeva, mesmo que subordinada aos padrões de exemplaridade que lhe seriam exigidos enquanto rainha. Mas permaneceram fontes diversas, sobretudo de arquivo: algumas bulas papais, ligadas ao contencioso com a Igreja resultante do seu casamento com Afonso III quando este se encontrava ainda casado com Matilde de Boulogne; as doações que lhe foram feitas pelo pai entre 1244 e 1284 e algumas das que lhe foram feitas pelo marido, que dão conta da dimensão peninsular do seu senhorio; os testamentos de ambos os monarcas, ou o retrato que dela desenha frei João Gil Zamora na biografia de Afonso III, que contribuem para lhe definir alguns traços de carácter; a documentação do mosteiro castelhano de Alcocer ou a resultante da gestão dos seus domínios da Estremadura, que nos informam sobre a administração do seu senhorio ou sobre os membros e a estrutura da sua casa; as doações que a própria rainha fez em 1283-1284, que desvendam alguns dos seus vassalos mais importantes. E é quase tudo. O resto resume-se à documentação régia, onde apanhamos o nascimento dos filhos, alguns membros da sua casa ou a intervenção, sempre parcimoniosa, em actividades de cariz político ou familiar.
Compõem uma imagem da rainha mais institucional do que pessoal, esquiva e fugidia quanto a pormenores e cenas do quotidiano ou à construção de perfis psicológicos ou morais. Neste tempo de regresso à biografia, um tempo porventura efémero dada a explosão do género entre historiadores, romancistas e escribas diversos, aproveitemos para revisitar os vestígios que deixou e nos permitem uma aproximação à sua trajectória de vida.

O Casamento
A 15 de Março de 1253, Afonso III encontrava-se em Santarém, de onde foi expedida uma carta de povoamento de uma propriedade régia situada próximo de Carregal do Sal. No mês seguinte, em dia que não podemos precisar, abandonou o paço da alcáçova para rumar ao Norte. No último dia do mesmo mês e nos primeiros dois dias do mês seguinte, a chancelaria ia registando a sua incursão em Trás-os-Montes pelas povoações de Vilar de Maçada, Murça e Lamas de Orelhão. A 10 de Maio sabemo-lo sediado em Bragança, de onde foram expedidas algumas cartas em benefício do mosteiro leonês de Moreruela. Depois, em dia incerto, rumou para poente, encontrando-se, em 20 de Maio, em Santo Estêvão de Chaves, povoação acastelada que nos dois séculos anteriores substituíra a romana Aquae Flaviae como centro político e administrativo da região». In António Resende Oliveira, As Primeiras Rainhas, Dona Beatriz Afonso (1244-1300), Círculo de Leitores, 2012, ISBN 978-972-42-4703-8.

Cortesia de CLeitores/JDACT