terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Poesia. Cesário Verde. Maria Alzira Seixo. «A meio caminho entre a fé e a crítica está a estalagem da razão. a razão é a fé no que se pode compreender sem fé; mas é uma fé ainda, porque compreender envolve pressupor há qualquer coisa compreensível»

jdact e manuelfigueiredo

Contrariedades
«Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo insensatamente os ácidos, os gumes
e os ângulos agudos.

Sentei-me à secretíria. Ali defronte mora
uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
e engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta à botica!
Mal ganha para as sopas...

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
por causa dum jornal me rejeitar,há dias,
um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
no fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais duma redacção, das que elogiam tudo,
me tem fechado a porta.


A crítica segundo o método de Taine
ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
muitíssimos papéis inéditos. A Imprensa
vale um desdém solene.

Com raras excepções, merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e empaz pela calçada abaixo,
um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
mas sim, por deferência a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingénuo os abandone,
se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa.
Obtém dinheiro , arranja a sua coterie;
e a mim, não há questão que mais me contrarie
do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimentos finos;
eu raramente falo aos nossos literatos,
e apuro-me em lançar, originais e exactos,
os meus alexandrinos...


E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
lgnora que a asfixia a combustão das brasas,
não foge do estendal que lhe humedece as casas,
e fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
oiço-a cantarolar uma canção plangente
duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
conseguirei reler essas antigas rimas,
impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
e esta poesia pede um editor que pague
todas as minhas obras.

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!»
Poema de Cesário Verde, in ‘Antologia

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