domingo, 14 de dezembro de 2014

Romance. Um Amor Feliz. David Mourão-Ferreira. «O meu padrasto, por sua vez, designava a minha amiga como ‘esse pau de virar tripas’; e punha em dúvida que alguém de bom gosto pudesse ‘achar graça àquele cabide’. Todavia, no Verão seguinte, ao verem-me só e dependurado…»

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«(…) Aí está outra coisa: a idade. Tanto como o nome, ainda menos que o nome, também a idade não deveria ter grande importância. Mas tem. Oh, se tem! Sofri horrores, aos dezasseis anos, por causa de uma belgazita, desengonçada e petulante, que com a família se refugiara na Foz do Arelho e de um Verão para o outro descobrira ter afinal mais dez meses que eu: o suficiente, em suma, para passar a tratar-me como a um fedelho, depois de me ter embriagado, nas férias do ano anterior, entre os abruptos rochedos de uma deserta e minúscula praia, com a ilusão de já eu ser um homenzinho. Só na vazante, com relativa facilidade, se alcançava pela areia aquele retiro; depois, mal a maré subia, logo nos sentíamos isolados, livres, seguros, como que fora do mundo ou no princípio do mundo. Durante horas e horas ninguém nos punha a vista em cima. E a minha mãe, apercebendo-se de tudo, mas a fingir que não, limitava-se, no primeiro desses Verões, a entre dentes troçar da belgazita quando ela dizia septante em vez de soixante-dix, a censurar-lhe, também de longe, a exiguidade ou o espalhafato das toilettes, a exclamar em privado com semblante sofredor: Que modos, Madonna mia! Nunca se viu disto aqui no hotel! O meu padrasto, por sua vez, designava a minha amiga como esse pau de virar tripas; e punha em dúvida que alguém de bom gosto pudesse achar graça àquele cabide. Todavia, no Verão seguinte, ao verem-me só e dependurado, mostravam-se ambos sempre dispostos a reconhecer que a pequena já nem parecia a mesma, que se tinha até tornado muito galante. Mais tarde, aos vinte e quatro anos, vim a sofrer vergonhas de outra ordem, graças a uma portuguesíssima platinada, toda olhos e boca, toda pernas e peito, que vivia por conta de um africanista e cujo sonho mais constante era o de vir a entrar para o teatro: apesar disso, confessava, com tocante coragem, que já tinha trinta e dois anos. Daí o meu vexame: o de a achar demasiado velha. E uma noite, em casa dela, nas vizinhanças do Bairro dos Actores, com o africanista oportunamente em África, houve uma cena dos diabos, até quase ao nascer do Sol, quando por acaso descobri, graças ao bilhete de identidade esquecido em cima de um toucador (a que ela chamava psyché), que na realidade tinha afinal trinta e seis. Oh, as lágrimas da planturosa platinada diante da evidência dos factos! Oh, a minha vergonha, e também a minha relutância, daí para a frente, mesmo com o africanista em África, em ir com ela ao cinema ou a qualquer casa de chá! Oh, inapagável ferrete de ignomínia, depois da já conhecida e escandalosa diferença dos oito anos, que abismo!, aquela revelação suplementar de mais esses míseros quatro centésimos de um século.
Tudo se paga; e da maneira que a gente menos espera. Trinta e seis anos tem agora... a Y. Trinta e cinco na ocasião em que nos conhecemos. Menos vinte e um do que eu. Desta vez, vexame, se fosse caso disso, só às avessas deveria senti-lo. Não, não sinto. Antes uma quase vaidade por fora, um certo orgulho por dentro; e talvez alguma inquietação, ou alguma perplexidade, bastante mais no fundo. Mas o orgulho é o que geralmente predomina. Sobretudo por ter sido ela quem... Como hei-de dizer? Por ter sido ela quem veio ao meu encontro, quem afinal espontaneamente..., me escolheu. E da maneira menos hipócrita. Da maneira mais simples, espantosamente mais directa. Como se o orgulho me importasse! O que importa é a luminosa plenitude que a Y trouxe à minha vida, numa altura em que eu já não esperava, por parte das mulheres, senão esses fogachos de admiração com que elas próprias se iludem, ou se pretendem promover na opinião dos outros. Isto para não falar de favores mais ou menos venais (…e se me desse um daqueles desenhos?; uma água-de-colónia é que me fazia agora jeito... Para nem mesmo falar de breves aventuras desinteressadas, mas sem véspera nem dia seguinte. Muitas das aves que nos últimos anos aqui vieram ao estúdio não chegaram a projectar na maioria destas paredes sequer a sombra das suas asas Semiabertas: umas, porque simplesmente visavam a altura desse divã; outras, porque apenas as empolgava a perspectiva de poder saber-se, de ao menos saberem elas, que por aqui tinham passado; outras, ainda, porque talvez unicamente esperassem, através deste trânsito, uma oportunidade de fugir de si próprias; quase todas, enfim, porque tinham mesmo pressa. Da parte da Y, além de um desinteresse absoluto, o mínimo de concessões ao odioso despotismo do Tempo. Ah, a primeira manhã em que ela aqui entrou! A partir de então, foi como se tudo isto se tivesse transfigurado.
Esse divã, estes gessos, estes moldes, esta poltrona, estes livros, até esse calorífero aí adiante , até ali ao lado aqueles cavaletes, aqueles taipais, aqueles ferros de sustentação, e essa cómoda, e o espelho por cima da cómoda, e o outro espelho, este, aqui à largura de toda a parede, tudo isto passou a viver de outra maneira, não propriamente com uma nova luz ou numa nova atmosfera (essas variam de cada vez que ela aqui vem), mas como se entre tudo isto se tivesse estabelecido, de repente, e para sempre, uma nova correspondência de volumes. Até a mulher da limpeza, que é viva e batida como os seixos de uma cascata, nunca mais se atreveu, como dantes tão amiúde acontecia, a ligeiramente arredar esta poltrona ou esse divã, a minimamente alterar a disposição deste ou daquele tapete, a sequer imprimir uma diferente orientação ao mostrengo desse calorífero. Já agora, não resisto a acrescentar: com tal mostrengo é que particularmente contrasta, nos dias de Inverno, o xaile branco da . In David Mourão-Ferreira, Um Amor Feliz, Editorial Presença, Lisboa, 1986.

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