segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Amizade. Amor e Eros na Ilíada. Maria Helena Pereira. «Primeiro que tudo houve o Caos, e depois a Terra de peito ingente, suporte inabalável de tudo quanto existe, e Eros, o mais belo entre os deuses imortais, [...] domina o espírito e a vontade esclarecida»

Cortesia de wikipedia

«Uma vez que, desde início, todos aprenderam por Homero, como ensinou Xenófanes, vamos, nós também, a essa fonte, e até poremos de parte tudo o que lhe é posterior, ainda que este tudo abranja algumas daquelas obras das quais se tem dito, e com razão, que educaram a Europa. Refiro-me, em especial, à Ética a Nicómaco, em que Aristóteles dedica a totalidade dos Livros VIII e IX a definir a amizade e a classificar as suas formas. Mas também aos diálogos em que o seu Mestre tentara definir a amizade e o amor (Lísis, Banquete, Fedro, se é esta, como geralmente se pensa, a sua ordem de composição). Com maioria de razão, deixaremos de lado as abordagens semióticas ou sociológicas modernas e as polémicas havidas entre pensadores contemporâneos. Mais difícil vai ser abstrair da distinção entre amor e amizade, e sobretudo pôr completamente de parte a terminologia a que os helenistas estão habituados: efectivamente, […] não faz parte do vocabulário homérico, embora ele já comportasse abstractos formados com o sufixo […] a partir de um adjectivo, como […] para encontrar o futuro equivalente de amizade, teremos de avançar até Teógnis de Mégara; é com um outro derivado de […], o substantivo abstracto […], formado com o sufixo […], muito corrente em qualquer época da língua grega, que teremos de contar para abranger dois tipos de afectos dissemelhantes: o amor e a amizade (e note-se de passagem que é ainda de […] que Empédocles há-de falar, ao referir o princípio que une os quatro elementos). É o contexto, pois, e não a terminologia usada, que nos permite recuperar os nossos conceitos. Assim, Ájax, ao proferir o seu breve e incisivo discurso, no termo da embaixada a Aquiles, acusa-o de não se deixar demover pela amizade dos companheiros.
Por outro lado, as relações sexuais, e torne-se desde já claro que, nos Poemas Homéricos, elas são sempre heterossexuais, têm uma fórmula própria, em que figura a mesma palavra. E eros?, é ainda e só um substantivo abstracto, frequentemente associado a desejo. Mais tarde, quando for deificado, será considerado, naturalmente, filho de Afrodite. E assim, […], juntamente com persuasão, e por vezes outras personificações ainda, farão parte do grupo que acompanha a deusa do Amor. A primeira ocorrência de Eros como divindade surge no começo da Teogonia de Hesíodo:

Primeiro que tudo houve o Caos, e depois
a Terra de peito ingente, suporte inabalável de tudo quanto existe,
e Eros, o mais belo entre os deuses imortais,
que amolece os membros e, no peito de todos os homens e deuses
domina o espírito e a vontade esclarecida.

A sequência do texto enumera depois a geração de Caos e de Terra, sem mais referir Eros, o que tem levado os comentadores a supor que ele é uma força geradora. Sem nos preocuparmos em saber se a Teogonia é anterior à Ilíada ou não, como hoje vários pretendem, voltemos ao eros homérico. Ele não é ainda uma divindade, mas uma pulsão capaz de dominar por completo o espírito. Um exemplo típico é o desta fala de Paris:
é que jamais eros me envolveu o espírito desta maneira

A situação é a mesma, quando transposta para o plano divino no episódio do Dolo de Zeus, no momento em que o deus supremo avista Hera:

assim que a viu, logo eros lhe envolveu o espirito prudente

Mas também pode ser, muito simplesmente, o desejo ou apetite de algo que, normalmente, uma vez satisfeito, conduz à saciedade. É assim que Menelau acusa os Troianos de não se saciarem da guerra, quando para tudo há um limite do sono, do amor, do doce canto e da ínclita dança. Assim também que figura na fórmula que tantas vezes assinala o terminar de um banquete:

depois que se saciaram de beber e de comer

Esta breve exemplificação terá demonstrado que a conceptualização dos afectos, tal como a dos factores que regem o comportamento humano, é extremamente imprecisa e flutuante em Homero. O que não significa que eles não só existam, como determinem as formas de actuação das figuras. Vejamos primeiro o caso mais evidente, a personagem de Aquiles, o representante máximo da […] da Ilíada, e, portanto, a incarnação dos mais altos ideais. Ele tem a consciência de ser o primeiro entre todos os guerreiros, pelo que lhe cabem as honras correspondentes […], que se traduz no presente de honra com que o recompensam. Numa cultura de vergonha, como Dodds mostrou ser a da Ilíada, aplicando-lhe com grande êxito essa terminologia vinda da antropologia cultural, o segundo termo corresponde à materialização do primeiro, pelo que a sua anulação se torna uma afronta intolerável». In Maria Helena Rocha Pereira, Amizade, Amor e Eros na Ilíada, Revista Humanitas, volume XLV, 1993, Universidade de Coimbra.

Cortesia da UCoimbra/JDACT