domingo, 28 de dezembro de 2014

Os Impetuosos. Luísa Leltrão. «Opinava na política, na vida social, havia muito boa gente que a temia pela liberdade com que falava, mas a sua inteligência e a capacidade notável com que enfrentava as situações tornavam-na figura de respeito e de reverência»

jdact e wikipedia

Ainda no meio da vida, já estou cansado como se fosse nos confins do seu entardecer. Tenho a cabeça branca e a alma devastada pela fúria de todos os ciclones. In António José de Almeida.

Memórias da tia Graça
«(…) Próximo do Natal na Quinta de São Jerónimo foi o baptizado da primeira neta da condessa, que já tinha dois netos varões, e Júlio ficara desiludido por não lhe ter calhado também um, como se fosse deficiência sua o sexo incompleto. Mas não deu mostras de nada, era o que faltava depois do que a pobre sofrera, outra vez seria. A Quinta de São Jerónimo mantinha o seu requinte aristocrático, sem mudanças, e a ela acorreram os membros da família, dispersos a pouco e pouco pelos condicionalismos da vida, os membros da família de Júlio, que a de Albertina não viera, a desobediência ao patriarca Diogo Silveira era ainda recente e o patriarca proibira-lhes que fossem, aquela filha estava morta para si e portanto para os outros. Na festa de baptizado ela sentira a orfandade com mais violência, como se fora filha das ervas, sem testemunhas de sangue a confirmarem-lhe a progenitura. A madrinha da neófita foi a avó paterna, Ana, condessa de Aguim, que gostava desta nora, mais do que das outras duas e por isso lhe manifestava ternura, admirando nela a força com que enfrentara o pai e a serenidade com que ainda sofria a falta da família. Ana via essas coisas mas nada dizia, não são coisas que se digam em meios civilizados, há que manter o pudor dos sentimentos. A sua figura imponente mantinha-se direita, quase a chegar aos cinquenta, parca nas manifestações, discreta no respeito pela vida dos seus, mas referência segura na autoridade fundadora. Seu marido, segundo de matrimónio, nunca fora chefe de família, cego havia duas décadas e agora preso pelas dores da gota, mantinha aquela disposição amável que sempre o caracterizara, afugentando de si e dos outros as torpezas da decrepitude. Também ele gostava de Albertina, infelizmente não a posso ver, mas sei que é linda e feminina, os cegos têm modos especiais de apreciar a beleza, que os outros não entendem. Albertina costumava acompanhá-lo, quando de visita a São Jerónimo, nos passeios de carruagem, e deleitava-se com esse patriarca de barbas brancas, cheio de sabedoria e de sedução que mantinha intacto o seu amor à Vida e à Mulher.
Apesar dos seus noventa e quatro anos, porfiava nos trabalhos literários, no interesse pelos destinos da pátria, à qual dedicara praticamente toda a vida. Possuía uma vitalidade tão grande que Ana confidenciara um dia a Albertina cumprir ainda ele gostosamente o seu dever conjugal, e muito bem!; a jovem corara envergonhada pela alusão ao tabu, porém a sogra era assim, livre e desassombrada, cada vez mais livre e desassombrada à medida que envelhecia, como se os anos lhe dessem o direito de se revelar enfim sem disfarces. Opinava na política, na vida social, havia muito boa gente que a temia pela liberdade com que falava, mas a sua inteligência e a capacidade notável com que enfrentava as situações tornavam-na figura de respeito e de reverência. O amor de sua vida fora este ancião e, por arrasto, o filho de ambos, o jovem e hercúleo Heitor, que aos vinte anos preguiçava no remanso do lar, sem outros interesses que não fossem a equitação e a caça. A mãe tinha o secreto temor de que ele não trilhasse as pisadas do pai, mas Heitor amavelmente continuava a olhar os livros como material de sucata e subvertia os ânimos dos vários preceptores, incumbidos de lhe abrir o espírito. A relação entre Ana e Albertina estabelecera-se como um amor à primeira vista, a atracção dos contrários que se completam, a jovem apresentava-se como produto genuíno e perfeito da mulher do seu tempo: doce, modesta, prazenteira; tinha mãos de fada nos bordados e rendas que confeccionava, cumpria gostosamente as actividades caseiras. Talvez por isso, aquando da entrada para a família, conquistara um lugar cimeiro, a sua disponibilidade levava os outros a abrirem-se com ela.
A festa do baptizado da pequena Maria Teresa era bem o exemplo disso, vários foram os que se lhe dirigiram a solicitar ajuda. Ana pedira-lhe que recebesse em casa o jovem Heitor a ver se o convencia a afeiçoar-se aos estudos: - Aqui na Bairrada só procura a companhia dos cocheiros, dos moços de estrebaria e outra gentinha do género! Talvez em Coimbra, no meio dos estudantes, ele entenda que a cultura é importante! Nunca se preocupara muito com o futuro dos cinco filhos que o primeiro marido lhe dera, talvez porque fosse nova, talvez porque eles fossem ricos, talvez porque muito mais amava este filho do que amara os outros. - Ó mamã, tenho o maior gosto em lhe ser prestável! Se o Júlio estiver de acordo, claro. Júlio esteve de acordo e Heitor sujeitou-se, se a mamã deseja, farei a sua vontade. Ficou combinado que depois das férias iria para Coimbra frequentar, como externo, o mesmo colégio de padres onde os irmãos tinham estado». In Maria Luísa Beltrão, Os Impetuosos, 1994, Editorial Presença, Lisboa, 1998, ISBN 972-23-1857-8.

Cortesia de EPresença/JDACT