sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

O Peixe para os Judeus e para os Cristãos. Leituras de um símbolo à luz da cultura greco-romana. Paula Barata Dias. «Arquéstrato teria sido um admirador fervoroso do peixe, pois, dos sessenta e dois fragmentos do seu poema contidos na obra de Ateneu, quarenta e oito dizem respeito a peixe»

Cortesia de wikipedia

«Observou o naturalista e eclesiástico Henry B. Tristram, autor de The Natural History of the Bible (1889, Londres), que na língua hebraica não se encontra nenhum termo específico para designar espécies particulares de peixe e espécies marinhas, ao passo que a língua grega antiga e o latim apresentavam designações distintivas: não menos de quatrocentos nomes para o grego, conforme os estudos linguísticos exaustivos de Francis Wood levados a cabo durante a década de trinta do século XX vieram confirmar, e cerca de duzentos e sessenta para o latim. De facto, os meados do século passado produziram abundantes estudos filológicos, concentrados nos aspectos etimológicos, morfológicos e semânticos, que trouxeram um conhecimento sistemático acrescido acerca da capacidade de o grego e o latim exprimirem e descreverem a realidade dos seres aquáticos. O espaço geográfico e o sistema ecológico do mundo mediterrâneo constituíam uma realidade natural comum, e os contactos comerciais e culturais desde cedo estabelecidos entre os povos do mediterrâneo garantiram a partilha de experiências e a influência recíproca. Assim, muitas designações particulares de peixes adaptaram-se, por transliteração sobretudo, do grego para o latim, mas também, numa etapa anterior, do egípcio para o grego. As pesquisas de D’Arcy Thompson desenvolvidas sobre os textos de Heródoto, Estrabão, Diodoro, Ateneu e Xenócrates expuseram que muitas designações gregas de tipos de peixe não se explicam pela etimologia grega, mas se justificam pela proximidade fonética com os termos egípcios das espécies piscícolas correspondentes. Este exemplo bem sucedido de transferência cultural entre os povos da Bacia Mediterrânica torna a questão do particularismo hebraico ainda mais complexa. De facto, os egípcios davam forma linguística a uma realidade menos conhecida, ou não presente no espaço original dos gregos, que é o das espécies marinhas de um grande rio, como o Nilo, e estes termos migraram para o grego quando os dois mundos estabeleceram um contacto efectivo, intensificado pelas conquistas de Alexandre. No mundo latino observa-se a mesma experiência do designar espécies estranhas à fauna marinha do espaço primitivo dos romanos.
Desta forma, espécies mais comuns nos rios Atlânticos ou do Centro e Norte da Europa, como o salmão e a truta, receberam designação latina, no que resulta de um processo modelar de contacto com uma nova realidade e da integração de um elemento novo na estrutura mental e linguística da instância de recepção. Assim, é natural que os romanos, cuja expansão ocorreu também para o Ocidente Atlântico e a Europa Central, apresentassem um termo específico para o salmão e distinguissem três tipos diferentes de truta, enquanto os gregos, tendo a sua expansão privilegiado o Este, o Sul e o Mediterrâneo oriental, só particularizassem na sua língua a espécie presente nos rios da Magna Grécia, a única experiência de facto relevante para o contacto com esta realidade natural. De facto, o interesse pelo mundo natural marinho foi constante entre pensadores gregos e romanos, conhecendo-se um número considerável de tratados que, sob os ângulos mais diversos, se dedicaram à classificação e descrição da fauna marinha. Aristóteles e sobretudo o livro nono da História dos Animais foi seguido por tratados de biologia marinha produzidos pela ciência helenística, hoje conhecidos pela sua utilização directa na obra de autores posteriores: Aristófanes de Bizâncio (século III a.C.), Leónidas de Tarento (século III a.C.), Alexandre de Mindo (século I d.C.). O livro oitavo do De Re Rustica de Columela teve por assunto prestar informações técnicas sobre a criação artificial de peixe com fins comerciais. Plínio o Velho dedicou os livros nono e trigésimo segundo da sua obra aos animais marinhos. Numa perspectiva diferente, o poema didáctico de Opiano Halieutica descreveu a história natural dos peixes nos dois primeiros livros, e os métodos de pesca nos três restantes. Dos quinze livros da obra de Ateneu de Náucrates Os Deipnosofistas (século II a.C.) o terceiro e o sétimo apresentam a culinária do peixe, isto é, o aproveitamento gastronómico das espécies marinhas, ilustrado com citações de tratados de ictiologia. Grande parte do interesse da obra de Ateneu deriva de nela estarem contidas cerca de sessenta e dois fragmentos do poema perdido Hedypatheia, Vida de Delícias de Arquéstrato de Gela (século IV a.C.), um grego siciliano precursor da atitude dos actuais gourmets, considerado o criador da gastronomia, que não teria hesitado em viajar pelo mundo conhecido de então, desde as costas itálicas até aos confins das costas do Mar Negro, para apresentar as delícias e o melhor modo de as valorizar pela arte culinária.
Arquéstrato teria sido um admirador fervoroso do peixe, pois, dos sessenta e dois fragmentos do seu poema contidos na obra de Ateneu, quarenta e oito dizem respeito a peixe. Destacam-se ainda, entre as autoridades evocadas, Doriano, autor do século I d.C., e sobretudo Pamphilos de Alexandria, que, em meados do século I d.C., teria feito um levantamento enciclopédico e glossográfico da cultura geral do tempo de Adriano, trabalho muito dependente de Alexandre de Mindo. Outros autores dos primeiros dois séculos do Império foram Juba II, rei da Mauritânia, Metrodoro, Demóstrato. Plutarco apresentou também, entre os seus Moralia, o De Sollertia Animalium, apresentado nos catálogos dos títulos das suas obras sob a sugestiva questão Terrestriane an aquatilia animalia sint callidiora, no qual se discute o tópico da sapidez, qualidade nutritiva e propriedades dietéticas das criaturas marinhas em comparação com as criaturas terrestres». In Paula Barata Dias, O Peixe para os Judeus e para os Cristãos, Leituras de um símbolo à luz da cultura greco-romana, Revista Humanitas nº LXIII, Universidade de Coimbra, 2011, ISSN 0871-1569.

Cortesia de UCoimbra/JDACT