domingo, 22 de novembro de 2015

Cartas de Amor. Fernando Pessoa. «Fernando que insistiu para que me dessem o que eu pedia, porque, segundo me disse mais tarde, tinha absoluta necessidade de me tornar a ver; de resto, eu senti, logo no primeiro dia, que ele me olhou de certa maneira...»

jdact e wikipedia

Nota Prévia
«(…) Só isto bastaria para conferir um incalculável valor às cartas que adiante se publicam; bem como ao relato-testemunho de que elas são precedidas. Por outro lado, estava-se geralmente bem longe de supor, pelos extractos de apenas treze cartas anteriormente publicados, que elas afinal constituíssem, na sua totalidade, este conjunto de meia-centena de tão diferentes textos de natureza intima; e estava-se igualmente bem longe de suspeitar que neles tão amiúde se manifestassem certos traços de humor, da bonomia, de ternura, até de surpreendente puerilidade, a, par, evidentemente, como já se sabia ou se calculava, de certos registos de diverso teor, tanto mais comoventes quanto mais espontâneos, tanto mais patéticos quanto mais contidos. Por se tratar de uma primeira edição, respeitou-se escrupulosamente a grafia original (sem prejuízo, pois, de em edições ulteriores ela vir a ser actualizada); respeitou-se também o modo bem pouco uniforme como Fernando Pessoa datava as suas cartas; e entendeu-se ainda, quanto às duas únicas que não trazem data, embora se mostre conjecturável a sua inserção no conjunto, que o mais prudente seria, por agora, relegá-las para um apêndice, onde igualmente se arquiva uma carta que, não sendo especificamente dirigida à destinatária, esta última teve o cuidado de religiosamente conservar também. Completa enfim o presente volume um posfácio de natureza crítica sobre o significado destas mesmas cartas. Posfácio esse que obviamente não tem a veleidade de esgotar o assunto (e qual o assunto referente a Fernando Pessoa que possa alguma vez considerar-se esgotado?), mas tão-só o propósito de pessoalmente reflectir sobre estes textos com que doravante se acrescenta a bibliografia activa do grande poeta, e de, a seu respeito, ir desde já adiantando umas tantas sugestões». In David Mourão Ferreira

O Fernando e Eu
(Relato da dona Ophélia Queiroz, destinatária destas Cartas de Fernando Pessoa, recolhido e estruturado por sua sobrinha-neta dona Maria da Graça Queiroz)

Onde é que a maldade mora
Poucos sabem onde é
Há maneira de o saber
É em quem quando diz que chora
Leva a rir e a responder
Indo em crueldade até
A gente não a entender
(Acróstico de Fernando Pessoa dedicado a Ophélia)

Como conheci o Fernando
Respondi a um anúncio do Diário de Noticias. Tinha 19 anos, era alegre, esperta, independente, e, contra a vontade de meus pais e da família, resolvi empregar-me. Não era que precisasse de o fazer, pois sendo a mais nova de oito irmãos e a única solteira, era muito mimada e tinha tudo o que queria. Fizera o 5.º ano singular de Francês, escrevia e falava correntemente o Francês comercial, escrevia à máquina em todos os teclados e sabia também um pouco de Inglês. (O Fernando um dia até me disse que, depois de casados, mo ensinaria melhor). Recebi em casa a resposta ao anúncio: … para assunto de seu interesse, é favor passar por esta direcção...» Era um negócio de brocas, na Rua da Assunção, 42, 2°: Félix, Valladas & Freitas, Lda. Ainda estava em regime de propaganda e só durou três meses; depois faliu. Entrei como empregada única da casa a ganhar 18$00, o que já era óptimo naquele tempo... De entrada, até só queriam dar-me 15$00, e foi o próprio Fernando que insistiu para que me dessem o que eu pedia, porque, segundo me disse mais tarde, tinha absoluta necessidade de me tornar a ver; de resto, eu senti, logo no primeiro dia, que ele me olhou de certa maneira...
Eram três sócios: Félix, o capitalista; o Mário Freitas Costa, que era primo do Fernando; e o Valladas, que era da Guarda Nacional Republicana. O Fernando não era propriamente empregado da casa, não sei mesmo se ganhava alguma coisa. Ajudava o primo na correspondência da firma. Traduzia directamente para francês e inglês o que o primo ditava em português. Como se sabe, o Fernando falava muitíssimo bem, principalmente, o inglês. Os amigos diziam, por graça, que ele até pensava em Inglês. Ia muito ao escritório, exactamente por ser primo e muito amigo do Freitas, e porque se juntavam lá, a conversar, vários amigos. Entre eles, lembro-me do Montalvor, que ia lá quase todos os dias e que não perdoava ao Fernando o facto de ele não publicar a sua Obra. Dizia-lhe: ó Fernando, é um crime você continuar ignorado. E ele respondia-lhe: Deixem estar, que, quando eu morrer, ficam cá caixotes cheios. Aparecia também o Ferreira Gomes, que tinha igualmente uma grande admiração pelo Fernando. Mais tarde, por acaso, fui encontrá-lo no SNI. Era muito brincalhão.
O Coelho Jesus. Com este passou-se uma coisa engraçada. Ele conhecia-me lá do escritório mas nunca se apercebeu, assim como ninguém, que eu namorava o Fernando. Um dia, seguiu-me na rua. Quando chegámos ao Largo do Camões, aproximou-se de mim, cumprimentou-me e disse-me: Posso acompanhá-la, ou comprometo-a? Compromete sim, respondi-lhe. O Simão Laboreiro, que era director de um jornal. Um irmão do Coelho de Jesus. Pantoja, um espanhol, e outros mais de quem não me recordo agora. Apareciam, então, muitos rapazes novos, a pedir ao Fernando a sua colaboração para jornais e revistas. E era coisa que ele nunca recusava. Conheci o Fernando no dia em que me apresentei ao anúncio e há, até, uma história engraçada, que vale a pena contar». In Fernando Pessoa, Cartas de Amor, Organização de David Mourão Ferreira, preâmbulo de Maria da Graça Queiroz, Lisboa, Edições Ática, 1978.

Cortesia de EÁtica/JDACT