quarta-feira, 18 de novembro de 2015

O Arco de Santana. Almeida Garret. «Ai, rua de Sant’Ana! Que é do teu arco e da tua festa, quando se lhe armava aquele palanque com que ficava uma igreja improvisada, e um coreto e um púlpito, aonde grasnava a música, berrava o frade…»

jdact e wikipedia

O Arco da Santa
«Mal pensa o voluntário académico, quando descendo rua de Sant’Ana abaixo, o braço no armão da peça, e os olhos na alta janela donde, entre o festivo azul e branco, lhe sorri constitucional beldade; e ele vai misturando, no alvoroçado pensamento, conquistas bélicas e amorosas, as damas que há de render e as guerrilhas que há de espatifar, e mais que tudo, as histórias que sobre isso se hão de contar à noite no refeitório dos Grilos hoje, oh impiedade! Convertido em casa de tripudio e bambochata de maganos estudantes, mal pensa ele que terreno clássico vai pisando, por que veneráveis padrões históricos vai passando sem os conhecer, que interessantíssima cena romântica é essa em que, depois de tantos séculos, novo e não menos interessante actor, lhe coube vir figurar. Falta-te, é verdade, ó nobre e histórica rua de Sant’Ana, falta-te já aquele teu respeitável e devoto arco, precioso monumento da religião de nossos antepassados, e que, certo é, mais te vedava a pouca luz do céu material que tuas augustas dimensões deixam penetrar, mas era ele em sim mesmo, foco da espiritual luz de devoção que ardia no bendito nicho consagrado à gloriosa santa do teu nome.
Caíste pois tu, ó arco de Sant’Ana, como, em nossos tristes e minguados dias, vai caindo quando aí há nobre e antigo às mãos de inovadores plebeus, para quem nobiliarquias são quimeras, e os veneráveis caracteres heráldicos de rei-d’armas, Portugal língua morta e esquecida que nossa ignorância despreza, hieroglíficos da terra dos Faraós antes de descoberta a inscrição Damieta! Assentaram os miseráveis reformadores que uma pouca de luz mais e uma pouca de imundície menos, em rua já de si tão escura e mal enxuta, era preferível à conservação daquele monumento em todos os sentidos respeitável! Com que desapontamento deste meu coração, depois de tantos anos de ausência, não andei eu procurando, em vão!... Na rua de Sant’Ana, uma das primeiras que a minha infância conheceu, as góticas feições daquele arco?... E a lâmpada que lhe ardia contínua, e os milagres de cera que lhe pendiam à roda, e toda aquela associação de coisas que me trazia à memória os felizes dias de minha descuidada meninice! Meninice que passou, sem mocidade, a esta tão trabalhosa, tão árida, tão despegada virilidade, em que não tardam as cãs e as rugas a visitar-me com mais precoce velhice ainda!
Ai, rua de Sant’Ana! Que é do teu arco e da tua festa, quando se lhe armava aquele palanque com que ficava uma igreja improvisada, e um coreto e um púlpito, aonde grasnava a música, berrava o frade, e toda a vizinhança tinha um dia de folgar?... E muito se rezava e muito se namorava e muito se comia, e todos iam para o céu. Ora que o façam hoje! Foi o célebre fracasso de José U que acabou com a devota festa e com o meu querido arco também. José U, para ilustração da presente história seja dito, era um curioso figurão da minha terra, uma das notabilidades, como se dizia em França, e hoje por cá se diz também já nos botequins, umas das notabilidades desta nobre e sempre leal cidade. Insigne mestre de capela, trazia arrematadas todas as festas e oragos menores do Porto e seus subúrbios, sem exceptuar os três São Joões rivais; a saber, São João o velho ou o republicano, de Cedofeita, São João o malhado, da Lapa, São João o realista, do Bonfim. Com efeito, São João que da fama de pedreiro se não livra!... Não me faltava ver mais nada.
Era o Sr. José U homem bem apessoado, e de tal capacidade e rotundidade nas formas posteriores, que, por elegante e popular metonímia, lhe chamaram a parte pelo todo, e foi apelidado José U, ou José outra coisa que a gravidade da minha história me não deixa por aqui mais clara. Andava, entre outras, de imemorial posse, na sua correicção e jurisdição harmónica, a parte música instrumental e vocal da festa de Sant’Ana do arco. Corria o ano de 182... Chegou o dia da santa, armou-se o palanque, treparam os menestréis ao coreto, saíram os padres detrás duma janela, principiou a missa cantada, sobre garraio capucho ao púlpito, começa José U com a sua gente o moteto de rigor... E eis senão quando, o travejamento de toda aquela caranguejola que dá de si, rende, casca, e zás por ali abaixo desanda tudo à rua. José U com o rolo de solfa na mão, o ceptro, o bastão de general Colcheia! Cai com todo o peso do seu nome num rabecão já estatelado.
Foram dentro com tremendo som os tampos do bojudo instrumento; e foi tremendo o diapasão que no violento contacto se fez... Em tal estado e posição ficou o bem-aventurado, que, à primeira sensação de desgosto e terror geral, sucedeu o riso e turbulenta cachinada. Acabou-se a festa da santa, poupou-se ao capuchio muita berraria e muita sandice, e os festeiros jantaram mais cedo. E assim terminou a última função da senhora Sant’Ana do arco. E o arco foi demolido daí a pouco tempo para minha eterna saudade e de todos os amadores e veneradores de arcos antigos e de semelhantes preciosidades. Fora fatídica, fora fatal ao bendito arco a agourenta queda de José U!» In Almeida Garret, O Arco de Santana, 1845-1850, Imprensa Nacional, Livraria Figueirinhas (1947-1ª edição) Porto Editora, Porto, 2011, ISBN 978-972-004-980-3.

Cortesia de INCM/PortoE/JDACT