terça-feira, 10 de novembro de 2015

Inês de Portugal. Pequenos Prazeres. João Aguiar. «Ao sair de Chaves, noite ainda, vestido como se fosse para montaria, já Pedro faz galopar o seu cavalo; javalis, cervos e lobos podem andar sem receio, que o Infante de Portugal não pensa hoje neles. O dia nasce e cresce, o Sol vai alto, mas ele não pára»

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De profundis clamo ad te, domine
«(…) Pedro olha à sua volta. Está só. Assim aguardará a chegada de Álvaro Gonçalves e Pero Coelho, que já tardam, parece-lhe. Só com os seus fantasmas. Que mais sou eu, senão um fantasma que só pode ser rei mas já não pode ser homem. Morto por dentro o homem, que o fantasma cumpra os deveres de el-rei, que por todos há-de velar e a todos há-de fazer justiça, grandes e pequenos, ricos e pobres, mais até a estes, que mais fracos são. Mas quem, pergunta Pedro enquanto olha o seu próprio rosto reflectido na sombria superfície do vinho que tem na taça, mas quem me fez justiça a mim, era eu infante e herdeiro do reino e agravado e ferido pelo maior mal? Os que sujaram Inês com as suas línguas imundas, aí andavam, ledos e folgados. Os que calaram o crime que se tramava, ficaram mui postos vai seu sossego. E os que a mataram, com mão tão certa como a do carrasco, esses, como os vi eu prazenteiros, comendo suas viandas, bebendo o vinho de suas vinhas, fazendo boa maridança com suas mulheres e até cantando na santa missa, como se fossem homens cristãos e não bestas-feras. Sim, e el-rei também, el-rei  Afonso de Portugal, meu santo pai, era um deles, e o mais principal, pois foi sua a sentença.
As recordações excitam-no, fazem-lhe correr o sangue mais depressa e subir-lhe à cabeça, como se para lá se tivesse mudado o coração. Assim foi, assim foi, porém hoje Afonso já não reina em Portugal e as bestas-feras jazem na masmorra à minha mercê e haverá de novo justiça, porque um rei-fantasma a fará, sobre grandes e pequenos, ricos e pobres. Sobre os vivos e também sobre os mortos. Roubaram-te de mim, Inês, mas não sabiam que assim mesmo te punham para sempre em mim. Para sempre, até ao fim do mundo. Um fantasma dentro de um fantasma, ambos num mundo de sombras, a recordar outro tempo em que viviam no mundo dos homens e sentiam na pele o calor do Sol, o vento e as carícias que um ao outro faziam. Ah, a lembrança da vez primeira. A lembrança da vez primeira, temperada com a delícia do segredo, das coisas escondidas. Ao sair de Chaves, noite ainda, vestido como se fosse para montaria, já Pedro faz galopar o seu cavalo; javalis, cervos e lobos podem andar sem receio, que o Infante de Portugal não pensa hoje neles. O dia nasce e cresce, o Sol vai alto, mas ele não pára. Galopa em frente, sem se deter, salta regatos e cercas, pisa terras de centeio e de vinha, não vê pastores nem rebanhos que se tresmalham espavoridos à sua passagem. Não pára para comer não dá descanso aos que o seguem, esgota a montada na corrida. Quer entrar na Galiza e respirar o mesmo ar que ela respira, quer ver as muralhas de Monterrei, de que tem ciúmes porque a cingem como num abraço protector.
Quando, por fim, os companheiros, poucos e de confiança, para que o segredo fique bem seguro, avistam homens de armas ao longe (um raio de Sol fez brilhar subitamente o aço de um arnês) e lhe pedem que sofreie o cavalo, que seja prudente, ele não lhes dá ouvidos, antes incita o animal. E tem razão, a sua ânsia não o enganou, é gente da mesnada dos Castro, vinda para saudá-lo e dar-lhe escolta. O próprio Fernando vem à frente, de sorriso aberto. Tudo foi combinado com grandes cautelas, mas ainda assim o jovem Castro quer ter uma derradeira certeza, por isso a sua saudação é quase uma pergunta: Bem-vindo a terras de Galiza, bem-vindo a Monterrei, senhor..., folgo que vosso pai vos haja permitido esta visita... Pedro compreendeu e responde com uma alegria travessa: Não o sabe ele, Fernando! Eu somente mandei dizer a el-rei que ia a Chaves por mor de fazer justiça em seu nome, e essa era a minha tenção. Esta manhã, saí em montaria para desenfadar e bem vejo agora que já não estou em Portugal... Enquanto fala, aproxima o seu cavalo do de Fernando e baixa a voz mas não abandona o sorriso nem a alegria: E aqui me tendes, como antes havíamos aprazado.
Depois, sentindo-se num sonho, cavalga ao lado de Fernando. Como num sonho, avista Monterrei, o castelo aninhado no alto da sua colina, dominando tudo em redor. Como num sonho atravessa o burgo, passa a barbacã, como num sonho recebe as boas-vindas de Álvaro Castro. E é ainda como num sonho que se ouve a si mesmo perguntar: E vossa irmã, dona Inês? Os ares de Galiza já a curaram daquela triste melancolia que a roubou à corte de Portugal e ao serviço da Infanta minha mulher? Ao que Fernando, com o sorriso ardiloso que Pedro já conhece, responde: Ela mesma poderá dizer-vos. E dona Inês ali está, entrou silenciosamente na sala enquanto eles falavam». In João Aguiar, Inês de Portugal, pequenos Prazeres, Edições ASA, 1997, ISBN 972-41-1822-3.

Cortesia de ASA/JDACT