terça-feira, 24 de novembro de 2015

O Reino dos Sonhos. Exército Negro. Santiago Garcia Clairac. «Com pulso firme e delicado, Arquimaes desenhou umas belíssimas letras que distribuiu em linhas rectas e formou um conjunto harmonioso, ordenado e pleno de mistério»

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«A todos os que têm sonhos que os ajudam a melhorar; a todos os que querem o melhor para os outros; vivemos em dois mundos, no da realidade forjamos o nosso carácter, enquanto que no reino dos sonhos descobrimos o melhor de nós mesmos»

A Fundação. Arquimaes, o sábio dos sábios
«A primeira página da lenda de Arturo Adragón, o valente cavaleiro que liderou um exército e fundou um mítico reino de justiça, isento de guerras, de tirania e de bruxaria, escreveu-se uma noite, quando vinte soldados a cavalo invadiram a rua principal da aldeia de Drácamont. Envoltos em grossas capas de pano, armados até aos dentes, apetrechados com cotas de malha, elmos e escudos, estes ginetes vinham para cumprir uma missão que só poderia realizar-se ao abrigo da escuridão, altura em que se levam a cabo as maiores infâmias. As ruas lamacentas e encharcadas encontravam-se solitárias. Os cães que se cruzaram no seu caminho fugiram em silêncio, como que pressentindo o perigo. As ratazanas, para não esbarrarem neles, optaram por abandonar os restos de comida putrefacta e refugiaram-se nas suas tocas escuras. O odor a morte acompanhava-os. Os soldados sabiam que, apesar do seu sigilo, os habitantes da insignificante povoação de Drácamont os espiavam através das portas e das janelas entreabertas, mas estavam tão seguros do seu poder que não se preocupavam com isso. Terem chegado aqui sem serem detectados pelos homens do rei Benicius, em cujas terras haviam penetrado clandestinamente, fora a parte mais difícil do trabalho. Estavam cientes de que as suas vidas corriam perigo, mas a recompensa e os juramentos de fidelidade incluíam este tipo de riscos. Por seu lado, os humildes camponeses de Drácamont preferiram ignorar a sua presença. Haviam aprendido que era melhor não se confrontarem com eles. Por isso pediram ao céu que eles, nesta escura e suja noite que não pressagiava nada de bom, voltassem a sair da região o mais depressa possível. Dentro em pouco voltaremos a casa, informou-os o capitão Cromell. Se tudo correr bem, haverá uma boa recompensa para todos. Entretanto, nos arredores da aldeia, perto do cemitério, no interior de um velho torreão, havia uma grande actividade. A salvo dos olhares indiscretos e com as janelas fechadas para evitar que a luz das velas chamasse a atenção, os ajudantes de Arquimaes, o alquimista, trabalhavam com frenesim. Arturo, o seu jovem ajudante, verteu um líquido negro e viscoso, que parecia ter vida própria, para dentro de um pequeno frasco de vidro, onde o seu mestre mergulhou a pena de aço; impregnou-a de tinta e começou a escrever sobre o curtido pergaminho amarelento que se estendia à sua frente. Com pulso firme e delicado, Arquimaes desenhou umas belíssimas letras que distribuiu em linhas rectas e formou um conjunto harmonioso, ordenado e pleno de mistério. Um texto encriptado que nenhum mortal poderia decifrar, uma vez que estava escrito numa língua secreta inventada pelo próprio Arquimaes, tal como costumavam fazer todos os alquimistas quando queriam proteger os seus inventos.
De repente, o silêncio quebrou-se e a noite encheu-se de ruídos alarmantes: o adejar de vários pássaros que levantam voo apressados, cascos de cavalos que golpeiam o solo empedrado, gritos que ordenam e comandam os soldados... A partir desse momento, o caos apoderou-se da escuridão e, antes que os habitantes do torreão tivessem tempo de reagir, o inquietante ruído de armaduras, espadas e escudos chocando entre si com violência fê-los compreender que o perigo se abatia sobre eles. O som do aço sempre era perigoso. Arquimaes parou de escrever quando a porta do seu gabinete se abriu bruscamente e uma vaga de ar gélido penetrou na sala, acompanhada por vários soldados que emitiam grunhidos ao mesmo tempo que empurravam e aprisionavam os ajudantes. Que ninguém se mexa!, rugiu o capitão Cromell, com a espada em riste e o rosto enfurecido. Cumprimos ordens do conde Eric Morfidio! O impulsivo Arturo tentou impedir a entrada dos soldados, sem se dar conta de que a sua pouca idade não iria constituir nenhum obstáculo para aqueles calejados guerreiros, habituados a lutar contra todos os que os enfrentassem, tivessem eles a idade que tivessem. O que fazeis?, gritou dando um passo na direcção dos intrusos, enfrentando o capitão, que já o olhava com raiva. Não podeis entrar aqui! Este lugar é sagrado! É o laboratório de Arquimaes! Encontra-se sob a protecção do rei Arco de Benicius e estamos nos seus domínios! A espada de um soldado ergueu-se, disposta a golpear, contudo uma voz poderosa impediu-o no último momento: Quieto! Não viemos aqui para matar ninguém! A menos que seja preciso...» In Santiago Garcia Clairac, O Reino dos Sonhos, O Exército Negro, 2006, tradução de Ana Maria Silva, Planeta Manuscritos, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-657-020-0.

Cortesia de PlanetaM/JDACT