terça-feira, 17 de novembro de 2015

Sátira na Literatura Medieval Portuguesa. Séculos XIII e XIV. Mário Martins. «… nada receberei de vós e mui ben vos citolarei, pois sei do ofício! E o último verso explica o tom alegre desta disputa: A mofar, Don Lourenço, a chufar!»

jdact e wikipedia

Sátiras contra os Favoritos e Magnates
«(…) Longo e de grande significado social é este género de cantigas contra os homens do poder e do dinheiro, luta de raízes bem medievais, a partir da pregação nos púlpitos. E o estendal alargava-se. Certo rico-homem não pagava os serviços duma pessoa de família. Outro contrariava o casamento da filha, dona Urraca Abril. Outro ainda não conseguiu ter filhos. Seria melhor casar com uma tendeira de nome dona Coelha, para ter um filho cada mês. E não falamos dos comendadores. A um deles acusavam-no de ter feito perder a terra a um escudeiro. Outro andava metido com a mulher confiada à sua protecção. Seria falsificar a história generalizar tais factos. As sátiras, as caricaturas e os panfletos ajudam a fazer a história. Mas não bastam, só por si. Concluímos, no entanto, haver naqueles tempos uma grande liberdade verbal e que os trovadores gozavam, em certa maneira, dos privilégios dos bobos da corte. Talvez os ameaçassem com um chicote, mas eles iam falando. Nestas cantigas contra os grandes, uma das mais bonitas e ágeis é a que Fernan Soárez Quinhones compôs contra o fidalgo Lopo Anaia, femeeiro e ladravaz. Que o rei o conserve junto de si, em Sevilha, e não se vá embora. Porquê? Porque, Se el algur acha freiras, / ou casadas ou solteiras, / filha-xas pelas carreiras. E se gritam, ficam com nódoas negras na cara. Fique em Sevilha, porque, onde passa, toma tudo para si. E o mesmo fazia o pai dele!

Sátiras a Trovadores e Jograis
Os poetas dos cancioneiros desavinham-se entre si, em pequenas escaramuças verbais, donde a sinceridade às vezes batia as asas. Transformavam-se, então, em mero ludismo, aliás útil para os divertir a si e ao público. Havia ataques de costumes menos limpos, debatiam-se questões de estética, verificavam-se choques de ordem social e diziam-se graças. E já não falamos de questões meramente pessoais. Comecemos por simples graças e disputas para divertir. A tenção entre Afonso Sánchez e Vasco Resende é um tanto sibilina. O tema é este: A senhora cantada pelo segundo poeta, morreu de facto ou isto não passou de simples metáfora? Porque fazia ele versos de amor a quem já morrera? Afonso Gómez, jogral galego, fala claro e diz a Martin Moxa: Tão velho sois que, decerto, comestes alguna erva que vos faz viver / tan gran tempo, que podedes saber / mui ben quando naceu Adan e Eva! Os vossos filhos barbados vêm de tempos antigos. Ora dizei-me, de que idade éreis vós, quando Almançor andou por aí a fazer estragos? Assim Deus me perdoe, quando nascestes vós? Antes do tempo em que encarnou Deus en Santa Maria?
Quanto a Pero Ponte, Soeiro Eanes pode-se gabar, não das cantigas que faz mas, sim, das boas cantigas que lhe fazem. Diz ele que não entende de trovas. Mas escreveu contra ele cantares de escárnio e ele entendeu tudo. Atacavam-se entre si, por vezes em razão do seu ofício, em geral a brincar. Jogral era menos do que trovador. Joan Garcia Guilhade dirige-se ao jogral Lourenço e repreende-o: Gostas muito de tocar cítola. Agora pretendes cantar e julgas que já és trovador. Não sei qual d’estes mesteres fazes pior! O jogral responde que o parceiro quer desfazer nele. Diga o que disser, falta-lhe competência para julgar. Não te zangues!, acode Joan Garcia, nem digas que não percebo do ofício. Perdes tempo! Lourenço replica habilmente que emende antes as trovas dele, pois bem precisam. Por sua vez, Joan Garcia Guilhade finge zangar-se, ameaça partir-lhe o citolão na cabeça, mas o jogral fica na sua.
Era isto a sério? Não. Puro divertimento para rir e sorrir, tanto mais que ambos, juntos, cooperavam na mesma cantiga. Eram como mestre e aprendiz, cego cantor e guia de cego, aprendiz de cantador. Noutra cantiga, queixa-se Lourenço da má paga que recebe e o outro responde que lhe fará dar cacetadas por um vilão. Afinal, tudo se arranja (cala-te e calar-me-ei, diz o patrão-poeta) e o jogral exclama: João Garcia, nada receberei de vós e mui ben vos citolarei, pois sei do ofício! E o último verso explica o tom alegre desta disputa: A mofar, Don Lourenço, a chufar! O tom de brincadeira ressalta noutras cantigas, como na tenção entre Joan Soárez Coelho e Picandon, antigo companheiro do trovador provençal Sordello. Estamos na primeira metade do século XIII. Ando pasmado, Picandon, pois non sabedes jograria fazer, / por que vos fez per corte guarecer? Responde o italiano que tem o direito de, também ele, ganhar à grande e ser estimado na corte, pois era entendido em canções, coplas e serventeses. E o outro: É isto o que vos perde, a vossa gabarolice! E Picandon: Podeis fazer pouco de mim, que não perco a minha jograria! Sei muitas canções e canto-as bem». In Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, 1986.

Cortesia de ICamões/JDACT