segunda-feira, 9 de novembro de 2015

O Complexo de Culpa do Ocidente. Pascal Bruckner. «A razão ocidental é esta aventura única de auto- reflexão a que nenhum ídolo resiste e que ataca a tradição e a autoridade. Mal nasceu, a Europa revoltou-se contra si e cedeu o seu coração ao inimigo, submetendo-se a um reexame permanente»

jdact

As patologias da dívida. Ceder o coração ao inimigo
«(…) Convirá a este propósito distinguir o colonialismo que para nós, modernos, à semelhança do fascismo e do comunismo, é condenável por princípio e os vários e complexos processos de colonização, simultaneamente benéficos e perniciosos, cujo historial é reconstituído pelo trabalho meticuloso do historiador fiel aos factos e à clareza. Em todo o caso, a colonização não terá impedido a criação de laços e a preservação de relações de estima e amizade meio século após o seu término. Enquanto franceses, dois mil anos após estes acontecimentos, não podemos deixar de reconhecer que a invasão romana da Gáia foi afinal positiva e que, se Vercingétorix não tivesse sido derrotado por César em Alésia e a cultura greco-latina não tivesse penetrado no território, teríamos sido durante muitos séculos uma miríade de tribos rudes com cultos religiosos obscuros. Em moldes similares, até ao século XV, o domínio árabe em Espanha permitiu o aparecimento de uma civilização extraordinária e o próprio império otomano teria sido mais breve se, sob certos aspectos, não tivesse representado um autêntico progresso. O que não quer dizer que, num ou noutro caso, as nações não se tenham insurgido contra a dominação estrangeira e lhe tenham posto um fim (nunca é demais lembrar que a conquista e o expansionismo não foram feitos exclusivamente europeus; todas as grandes civilizações, os Persas, os Mongóis, os Chineses, os Aztecas e os Incasm, foram colonizadoras; os muçulmanos invadirem a Pérsia, a Índia, o sueste asiático, o Sudão e o Egipto, destruindo as religiões locais e massacrando os rebeldes; mas estes factos raramente são mencionados na historiografia oficial; sintomática deste estado de espírito é a excelente compilação de Marc Ferro sobre os crimes do colonialismo; não há qualquer referência à conquiste árabe nem ao império otomano; politicamente correcto, a quanto obrigas). Num regime colonial, os povos colonizados são infantilizados, rebaixados e humilhados, enquanto as potências coloniais lhes corrompem a alma, espezinham as suas crenças e deturpam a sua essência. Lemos hoje com assombro os documentos coloniais que justificam o domínio das raças inferiores pelas raças superiores e parece-nos insensata a obstinação de uma certa esquerda durante a Quarta República (Guy Mollet, François Mitterrand, Robert Lacoste) quer querer manter a Argélia no seio francês. Dizer que desaprovamos é pouco, está fora de questão, Eis a razão pela qual a tentativa de embargo de um certo Islão vingativo, o dos wahabitas sudaneses ou dos Irmãos Muçulmanos, às sociedades europeias se assemelha a uma iniciativa colonial que deve ser contrariada. Ou o Islão se torna, entre nós, numa religião como as outras ou esbarra com uma sólida resistência por parte de homens livres para os quais o jugo do fanatismo, dois séculos depois da Revolução Francesa, é exasperante.
Como pode uma civilização como a europeia, responsável pelas piores atrocidades e pelas realizações mais sublimes, ver-se exclusivamente pelo prisma da maldição? Se a Europa foi dominada por uma verdadeira paixão pelo genocídio, foi também ela que permitiu conceptualizar certos crimes como os genocídios e que, depois de 1945, se distanciou da sua própria barbárie para dar a esta palavra um sentido preciso, arriscando-se a fazer recair a acusação sobre ela própria. A Europa é simultaneamente uma fabulosa máquina que produz malefícios e que os contém. A singularidade da Europa reside no facto de não se esquivar aos seus fantasmas e conhecer na perfeição os males de que padece e a fragilidade das barreiras que a separam da sua própria ignomínia. Esta extrema lucidez impede-a de apelar a uma cruzada do Bem contra o Mal e, em alternativa, incita-a a propor o conflito entre o preferível e o detestável, segundo a fórmula de Raymond Aron. Os governantes europeus nunca subscreveriam as palavras de W. Bush, no dia após os atentados do 11 de Setembro de 2001. Há algo que nós, filhos do Velho Mundo, sabemos: não somos bons (mas perfectíveis). A Europa é o pensamento crítico em acção: um pensamento que desde o Renascimento assenta no cerne da dúvida que o nega e sobre o qual recai o olhar de um juiz intransigente. A razão ocidental é esta aventura única de auto- reflexão a que nenhum ídolo resiste e que ataca a tradição e a autoridade. Mal nasceu, a Europa revoltou-se contra si e cedeu o seu coração ao inimigo, submetendo-se a um reexame permanente. Se a incriminação do sistema é integrada no próprio sistema e se, por exemplo, a história colonial é contestada desde o começo pelas diversas correntes do anticolonialismo, estes espectos devem-se ao facto de a sociedade europeia, para além de se reger pelo princípio da expansividade, ser um espaço de pluralismo e de relatividade de crenças e credos. Acrescem aos antagonismos entre países em determinada área geográfica as intrínsecas e fundamentais divisões nacionais. Não defendo que a Europa é superior apenas por duvidar da sua superioridade. Todavia, pelo menos sob este especto, difere de todas as outra culturas que não duvidam sistematicamente das suas certezas. Tal como o Velho Mundo, ninguém se exime à dúvida». In Pascal Bruckner, La Tyrannie de la Pénitence, Essai sur le Masochisme Occidental, Editions Grasset Fasquelle, 2006, O Complexo de Culpa do Ocidente. Publicações Europa-América, 2008, ISBN 978-972-1-05943-6.
                 
Cortesia de PEA/JDACT