sábado, 13 de julho de 2013

Destroços. O gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios. Eduardo Lourenço. «… uma confusão, no fundo da mesma ordem e da mesma raiz que a do ‘espinosismo’, merece uma atenção particular que haja na obra de Gil Vicente uma nítida influência franciscana parece incontestável»

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«(…) Como é de todo impossível meter tanto auto de devoção sob o alqueire só resta uma porta: lê-los de modo a ver no que é uma expressão fiel de uma ortodoxia, a sua impugnação. Incapazes de crer no que Gil Vicente naturalmente acreditava, e com ele os seus contemporâneos, os nossos exegetas vão vestir-lhe à força a camisa de onze varas do espinosismo ou de outra doutrina igualmente afastada do pensamento e do sentimento de Gil Vicente. Deste modo, esses exegetas profissionais do realismo avançam tranquilamente as suas ousadas opiniões, que não fôra a distância que nos separa de Gil Vicente e a convenção implícita mas absurda de que o tempo chega para criar uma indiferença moral em relação ao que se julga, seria um acto de pura e simples difamação. A verdade é que, na prática e na teoria, o tempo importa pouco em relação à Verdade embora não haja verdade sem tempo. Nem ninguém se ocuparia de Gil Vicente se ele não fosse actual e, de certo modo, ninguém o actualiza mais, embora erradamente, que essa critica sociológica realista. Simplesmente, nós não podemos impor a Gil Vicente e à sua obra um estigma que ela não suporta e o primeiro dever do historiador e do crítico, seja ele burguês, seja ele progressista, é o de aceitar e ver a obra de Gil Vicente segundo a letra e segundo o espírito que nela se acham.
Mas objectar-se-á: não são essa letra e esse espírito de tal sorte que a dúvida e o equívoco sejam legítimos? Obras há para quem a questão se pode pôr e acaso sempre se porá, Shakespeare, por exemplo. O caso de Gil Vicente é muito outro. A sua religiosidade, no sentido mais tradicional, não é algo que tinja superficialmente as suas peças, que aí apareça por acidente, é a matéria de quase todas elas e, sem o admitir, só nos ficaria a solução de as considerar ininteligíveis. Todas as passagens relativas aos anjos, aos mistérios da Igreja, à Virgem, de quem Gil Vicente é um maravilhoso poeta, são da mais comum, mas também da mais segura ortodoxia. Mas mesmo que algum detalhe apareça mais contestável (ao fim e ao cabo não se trata de um tratado de teologia...), bastará a arquitectura simbólica, a mise-en-scene realisticamente medieval de toda uma visão teológica do mundo segundo a mais comum tradição dos mistérios e dos dados escriturários, para ter por conjectura arbitrária essa hipótese de espinosismo avant-la-lettre e outras.
Nem eu faço mais do que abrir portas que há muito estão abertas. Fora desse círculo de racionalismo dogmático, a perfeita ortodoxia de Gil Vicente não surpreende ninguém. O modelo de vicentistas que foi D. Carolina há muito escreveu que a crítica de Mestre Gil só se explica por ser ele perfeitamente religioso, não só cristão, mas cristianíssimo. E na mais precisa e valiosa análise que até hoje se fez à linguagem e ao estilo de Gil Vicente, a de Paul Teyssier, pode ler-se que tal análise permite aperceber as vastas perspectivas de um mundo que se ordena segundo a mais estrita ortodoxia catolica. Estamos portanto longe dos manes de Espinosa e do Deus sem transcendência, se o não estamos da Natureza, ou da sua ordem racional à qual, segundo Saraiva, heterodoxamente, Raimundo Lúlio, em bom franciscano, assimilaria Deus.
Este último ponto, que resulta de uma confusão, no fundo da mesma ordem e da mesma raiz que a do espinosismo, merece uma atenção particular que haja na obra de Gil Vicente uma nítida influência franciscana parece incontestável. Mas que isso ajude a suspeitar a ortodoxia de Mestre Gil é uma hipótese que falha a compreensão da nossa espiritualidade medieval e inspira a gregos e troianos singularíssima visão acerca da mentalidade nacional. O mais lídimo representante dessa desfiguração heterodoxa do franciscanismo é Jaime Cortesão. Os motivos por que Jaime Cortesão invoca uma visão do franciscanismo que não corresponde à realidade, são nobres e aceitáveis, como aceitáveis podem ser em certa medida os de A. José Saraiva. O franciscanismo de Jaime Cortesão, cuja ideia reencontramos em Saraiva, é um franciscanismo de sonho, um franciscanismo adequado à mentalidade livre-pensadora e socialista do século XIX, digno pendant do Cristianismo suave e humanístico de Renan, mas não é o franciscanismo real, o de S. Francisco, que jamais sonhou redimir a Natureza numa perspectiva natural, senão naturalista, mas apenas e com a violência extrema que no Evangelho se manifesta, na perspectiva da Cruz. Jaime Cortesão vê o lirismo, vê o amor à Natureza, a efusão grandiosa que ela suscita e pensa, contra a atitude de Francisco de Assis e as suas palavras expressas, que isso podia ter para ele algum sentido fora da Cruz. Se S. Francisco toma a Criação como uma rosa e para a submeter à ascese de uma crucifixão redentora». In Eduardo Lourenço, Destroços, O Gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios, Gradiva, 2004, ISBN 972-662-945-4.

Cortesia Gradiva/JDACT