sábado, 20 de julho de 2013

O Bebedor Nocturno. Herberto Helder. A Vida Breve. «Assusta-me quando num relance vejo as entranhas do espírito-político dos outros. Ou quando caio sem querer bem fundo dentro de mim e vejo a revolução no abismo interminável da eternidade, abismo através do qual me comunico fantasmagórica com Fernando José e Deus»

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Poema do Velho Testamento
[…]
Inumeráveis me envolvem os touros de Basã.
Leões que abrem as bocas para me dilacerar.
E os meus ossos desconjuntam-se.
Derrete-se meu coração como cera contra as chamas.
Seca-se a boca de argila.

Ladra o tumulto dos cães. Sangrando de pés e mãos,
rolo sobre um chão mortal.
Espalharam os meus ossos, dividiram minha túnica:
não te afastes mais de mim, ó grande força celeste!
Arranca aos cães e ao gládio esta vida singular.
Toma-a às garras dos leões e aos altos comos dos
búfalos.

A gazela brame correndo para a água, e corre a minha
alma para ti.
Quando verei Aquele de que tenho tanta sede?
Cresce-me o pranto se me perguntam onde está o
Deus vivo.
Triste, lembro-me de haver caminhado para ti,
entre os gritos delirantes de um povo na sua festa.
Que tens, ó minha alma, que estremeces de
melancolia?
Porquê gemer e não cantar Aquele
onde se apoia a tua face?

Sobre os montes do exílio tua lembrança me
enlouquece.
O abismo tem sede de abismo: tuas chuvas
turbilhonantes
caem sempre sobre mim, no fragor das cataratas.
Nascia-me de ti um canto tumultuoso,
longamente agora esqueço nesta inspiração das
lágrimas.
Onde está o Deus vivo? - perguntam-me os frios
de coração. E eu pergunto onde está o meu Deus
vivo.
Que tens, ó minha alma, que estremeces de
melancolia?
Porquê gemer e não cantar Aquele
onde se apoia a tua face?

Onde está o Deus vivo, que se não esgota
o tempo das trevas? Sobre os montes do exílio, tremo
e peço que revele a sua luz.
Que eu mencione em minha cítara um Deus de alta
presença.
Que tens, ó minha alma, que estremeces de
melancolia?
Porquê gemer e não cantar Aquele
onde se apoia a tua face?

Piedade, ó Deus, piedade!
Agacho-me debaixo da sombra das tuas grandes asas.
Em ti espero a passagem dos flagelos.

Alto Senhor abrindo-se sobre mim, resguarda-me
dos devoradores.
Oh, sê fiel à tua fidelidade!

Porque a minha alma está deitada entre os leões,
entre fogos e flechas.
Urde-se o canto no silêncio do coração.
Despertai a glória da manhã, ó cítara e alaúde!
Sê fiel à tua fidelidade!

Ergue-te, ó Deus, pássaro terrível,
sobre todos os céus.
Levanta a tua glória sobre as raízes da terra.
Que se embaracem nas redes os que me lançaram
as redes da sua malícia.
Que se envolvam nas suas próprias trevas.

Toldam-se as nuvens em tua graça.
Oh! Sê fiel à tua fidelidade!
Ergue-te, ó Deus, pássaro terrível,
sobre todos os céus.
Levanta a tua glória sobre as raízes da terra.

Salva-me, ó Deus, sobem-me as águas até à alma.

Mergulho no lodo profundo, afundo-me no abismo
das águas. Minha vida queimou-se
na espera do Senhor.
[…]

Poema de Herberto Helder, in “O Bebedor Nocturno

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