segunda-feira, 22 de julho de 2013

Madalena. História e Mito. Helena Barbas. «Se Madalena unge a cabeça de Jesus é mestra dele; ao derramar-lhe lágrimas/água sobre os pés reconhece-o a ele como mestre, transformando-se na discípula mais atenta, imagem que vamos encontrar reiterada nos vários evangelhos gnósticos e apócrifos»

jdact e wikipedia

Fusão com Maria de Betânia
«(…) Os passos evangélicos até aqui inventariados são considerados por todos os estudiosos e apaixonados pelo assunto como o núcleo duro e ortodoxo a partir do qual se elaborou a principal versão da hagiografia/biografia de Maria Madalena. Lendo as cenas sucessivamente pode entender-se como funcionou o processo de síntese lendária, aglutinando duas unções numa ou multiplicando-as, privilegiando um evangelista por outro, confundindo-os, pegando no Simão leproso de Betânia e, talvez por homonímia, transformando-o no fariseu da Galileia. Uma série de episódios desgarrados vão ser ligados entre si pela necessidade de narrar, de preencher os vazios entre os fragmentos, de estabelecer uma unidade narrativa coerente, de criar um romance».
Além destas associações e sínteses, temos os problemas suscitados pelas mais inesperadas tresleituras ou ignorâncias resultantes do facto de se estar diante de outro universo cultural. Por exemplo, ainda hoje, para um judeu, deitar água sobre os pés de alguém é uma expressão idiomática, uma metáfora, que significa o respeito do aluno pelo professor: o discípulo prova e demonstra que tudo o que sabe aprendeu com o mestre, o que, não deixando de estar nela implícita, pode suscitar uma outra leitura da cena das lágrimas. Segundo esta perspectiva, a relação mestre/discípulo entre Madalena e Jesus pode ser interpretada de modos duplos e ambivalentes. Só alguém de estatuto superior poderia ungir a cabeça a outrem. Nesta cena reúnem-se dois gestos de respeito, unção na cabeça/pés e lágrimas/água sobre os pés, como reconhecimento de um estatuto de superioridade de um ser sobre o outro, mas são ambos atribuídos a Maria. Se Madalena unge a cabeça de Jesus é mestra dele; ao derramar-lhe lágrimas/água sobre os pés reconhece-o a ele como mestre, transformando-se na discípula mais atenta, imagem que vamos encontrar reiterada nos vários evangelhos gnósticos e apócrifos.

Madalena e os Evangelhos Apócrifos
Embora as características atribuídas a Madalena nos textos canónicos formem o núcleo duro que vai inspirar a figura popular, não bastam para justificar os pormenores que vão aparecer nas suas muito variadas representações, em escritos, pinturas e esculturas. Mesmo que a figura ficcionalizada da Madalena não cause um grande impacto na arte e literatura ocidentais até ao início das cruzadas, as metamorfoses da figura dos evangelhos inaugurou-se no Oriente durante os tempestuosos começos da Cristandade. É nos textos apócrifos, e outros rejeitados pelo cânone, que se vão encontrar elementos fundamentais para a construção da vida e figura de Maria Madalena.

Apócrifo: oculto ou falso
Etimologicamente, apócrifo significará coisa escondida, oculta. O termo é aplicado para definir os livros que se destinavam exclusivamente ao uso privado dos adeptos de uma seita ou iniciados em mistérios. Posteriormente adquire o sentido de falso ou espúrio. Porém, inicialmente e face ao Novo Testamento, como vimos, a designação apócrifo refere os escritos que, desenvolvendo temas análogos são excluídos do cânone. Os textos são rejeitados por uma excessiva proximidade temática relativamente aos oficiais, ou seja, uma semelhança de conteúdos que, do ponto de vista religioso-ideológico, poderá desencadear e fundamentar interpretações erróneas. Apesar disto, alguns deles continuam a ser utilizados pelos próprios padres da Igreja (Clemente de Alexandria, Eusébio, etc.) e algumas festas litúrgicas não têm outro fundamento escrito. Uma aceitação que vai ter a sua contraparte mais clara e evidente nas representações artísticas.
Para o nosso percurso, estes textos, contemporâneos da versão oficial, serão considerados como variantes narrativas de um mesmo episódio que, por vezes, procuram explicitar ou complementar (não permitindo, ainda, que seja ignorada a possibilidade de contaminação. Têm um interesse inegável sob uma perspectiva cultural: Se não são fontes fidedignas para a história de uma maneira, são-no de outra. Registam as imaginações, esperanças e medos dos homens que os escreveram; mostram o que era aceite pelos cristãos ignorantes dos primeiros tempos, o que lhes interessava, o que admiravam, que ideais de conduta defendiam para as suas vidas, o que pensavam ir encontrar na próxima».
Em última instância, à semelhança do que acontece com a lenda, têm por função registar a mentalidade de um tempo e espaço. São úteis e preciosos: para o amante e estudante de arte e literatura medievais revelam a fonte de parte muito considerável do seu material e a solução de muitos enigmas. Têm, de facto, exercido uma tão grande e vasta influência (totalmente desproporcionada aos seus méritos intrínsecos) que ninguém que se preocupe com a história do pensamento e arte cristãos pode correr o risco de os negligenciar. É enorme a influência dos Evangelhos Apócrifos no Ocidente, seja em termos literários como pictóricos: A Idade Média dispensou-lhes um franco acolhimento. A Legenda Aurea de Jacopo da Varagine (Varazze) e o Speculum Historiale de Vicente de Beauvais, ao transcrevê-los quase integralmente, sub ministraram abundante matéria de inspiração para os decoradores das velhas catedrais e para os pincéis de Fra Angelico ou de Giotto. À revelia das tentativas de correcção e rasura decorrentes do Concílio de Trento, continuam a inspirar os mais diversos criadores: Dante, Calderón de la Barca, Milton, Klopstock e os nossos contemporâneos Paula Rego e José Saramago».

In Helena Barbas, Madalena, História e Mito, Ésquilo Edições, Lisboa, 2008, ISBN 978-989-8092-29-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT