segunda-feira, 22 de julho de 2013

Madalena. História e Mito. Helena Barbas. «Apareceu então uma mulher da cidade, uma pecadora. Sabendo que ele estava à mesa na casa do fariseu, trouxe um frasco de alabastro com perfume. E, ficando por detrás, aos pés dele, chorava; e com as lágrimas começou a banhar-lhe os pés, a enxugá-los com os cabelos…»

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Acoplamento das unções
«(…) Mas o episódio passa-se em casa de Simão, o leproso, um doente, sofrendo ou tendo sofrido de um mal de pele contagioso. Todo o problema da doença e do pecado terá que ter em conta as ferozes regras judaicas, tanto bíblicas quanto neotestamentárias, sobre a pureza, a purificação, o kashrut e o kosher. Apesar disso, aqui Madalena é apenas acusada de desperdício, o que se limita à ideia de riqueza já atribuível à personagem. A importância da passagem acima reside na fala de Cristo. Este dirige-se a Madalena, dando-lhe existência como pessoa / personagem. Antecipa-lhe a função de mirrófora e insere-a no grupo das mulheres que, em breve, lhe irão ministrar os ritos funerários. A esta cena segue-se a traição de Judas e a Última Ceia. Todas estas circunstâncias são confirmadas pela versão de Marcos, praticamente idêntica, e que reitera a fama futura do gesto da unção, a ter tanta fortuna quanto a própria palavra do Salvador. Só em Lucas vai ser marcada claramente a negatividade tanto do anfitrião, um fariseu, quanto da personagem, uma pecadora:
  • Lucas: Apareceu então uma mulher da cidade, uma pecadora. Sabendo que ele estava à mesa na casa do fariseu, trouxe um frasco de alabastro com perfume. / E, ficando por detrás, aos pés dele, chorava; e com as lágrimas começou a banhar-lhe os pés, a enxugá-los com os cabelos, a cobri-los de beijos e a ungi-los com perfume. (...) disse a Simão: Vês esta mulher? Entrei em tua casa e não me derramaste água nos pés; ela, ao contrário, regou-me os pés com lágrimas e enxugou-os com os cabelos. Não me deste um ósculo; ela, porém, desde que eu entrei, não parou de cobrir-me os pés de beijos. Não me derramaste óleo na cabeça; ela, ao invés, ungiu-me os pés com perfume. (...) Em seguida, disse à mulher: Teus pecados estão perdoados. E logo os convivas começaram a reflectir: Quem é este que até perdoa pecados? Ele, porém disse à mulher: Tua fé te salvou; vai em paz.
Aqui, a figura feminina já não unge a cabeça de Cristo, mas os seus pés, depois do tradicional banho de lágrimas e enxugar com os cabelos, um ritual que não se apresenta como fúnebre, mas de hospitalidade. De salientar o facto de existir o gesto de derramar óleo sobre a cabeça dos convidados que pode, à primeira, ser lido como o cumprir de uma regra de etiqueta, um acto associado às boas maneiras sociais. Em qualquer dos casos, a figura feminina que unge a cabeça de Cristo nos outros episódios não é a anfitriã, é uma intrusa que vem perturbar uma reunião de amigos. Com os tempos, este comportamento vai tornar-se insólito, ou adquirir outras leituras decorrentes do uso sacramental, por cristãos, gnósticos e cátaros, que passa a ser feito do gesto da unção. Também a cena que se segue não é a da morte, como irá acontecer de novo em João:
  • João: Seis dias antes da Páscoa, Jesus foi a Betânia, onde estava Lázaro, que ele ressuscitara dos mortos. Ofereceram-lhe aí um jantar; Marta servia e Lázaro era um dos que estavam à mesa com ele. Então Maria, tendo tomado uma libra de um perfume de nardo puro, muito caro, ungiu os pés de Jesus e os enxugou com os seus cabelos; e a casa inteira ficou cheia com o perfume do bálsamo. Disse então Judas Iscariotes, um de seus discípulos, o que o iria trair: Porque não se vendeu este perfume por trezentos denários para dá-los aos pobres? Ele disse isso não porque se preocupasse com os pobres, mas porque era ladrão e, tendo a bolsa comum, roubava o que aí era colocado. Disse então Jesus: Deixa-a; que ela o conserve para o dia da minha sepultura! Pois sempre tereis os pobres convosco; mas a mim nem sempre me tereis.
O acto de ungir retoma o carácter funéreo, embora o enxugar dos pés com os cabelos não patenteie qualquer característica penitencial. A cena da refeição em casa do leproso / fariseu muda-se para casa do ressuscitado.

Fusão com Maria de Betânia
É no Evangelho de João que Maria, homónima de Madalena, se funde com esta última dando origem ao estabelecimento de laços familiares com Marta e Lázaro, processo tão caro ao modo de formação das lendas. É também neste Evangelho que a crítica ao gesto de Maria, primeiro anónima e depois feita pelo anfitrião, é atribuída a Judas. Criam-se aqui outros laços particulares entre a pecadora e o traidor que mais tarde vão ser explorados pela tradição, como o noivado de Madalena com Judas, talvez inspirado pela coloração do ciúme presente na sequência.
Maria de Magdala é assim identificada com Maria de Betânia e, deste modo, entra retroactivamente em todas as outras situações narrativas, anteriores e posteriores, que tenham aquele cenário por espaço, como o jantar em casa de Simão. Por outro lado, havendo recorrência de personagens, mais ou menos secundárias, passam estas cenas, junto com os respectivos actores, para a sua biografia. Assim acontece com mais dois episódios, o da ressurreição de Lázaro, narrado por João:
  • João: Havia um doente, Lázaro de Betânia, povoado de Maria e de sua irmã Marta. Maria era aquela que ungira o Senhor com bálsamo e lhe enxugara os pés com seus cabelos. Seu irmão Lázaro se achava doente. (...) Quando Marta soube que Jesus chegara, saiu ao seu encontro; Maria, porém, continuava sentada, em casa. (...) Tendo dito isso, Marta, afastou-se e chamou sua irmã Maria, dizendo baixinho: O Senhor está aqui e te chama! Esta, ouvindo isso, ergueu-se logo e foi ao seu encontro. (...) Quando os judeus que estavam na casa com Maria, consolando-a, viram-na levantar-se rapidamente e sair acompanharam-na, julgando que fosse ao sepulcro para aí chorar.
E aquele em que Maria escolhe a melhor parte e se recusa a ajudar Marta nos afazeres domésticos, narrado por Lucas:
  • Lucas: Estando em viagem, entrou num povoado, e certa mulher chamada Marta, recebeu-o em sua casa. Sua irmã, chamada Maria, ficou sentada aos pés do Senhor, escutando-lhe as palavras. Marta estava ocupada pelo muito serviço. Parando, por fim, disse: Senhor, a ti não importa que minha irmã me deixe assim sozinha a fazer o serviço? Dize-lhe pois que me ajude. O Senhor, porém respondeu: Marta, Marta, tu te inquietas e te agitas por muitas coisas; no entanto, pouca coisa é necessária, até mesmo uma só. Maria, com efeito, escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada».
In Helena Barbas, Madalena, História e Mito, Ésquilo Edições, Lisboa, 2008, ISBN 978-989-8092-29-8.

Cortesia de Ésquilo/JDACT