quinta-feira, 11 de julho de 2013

Memórias do Tempo de Camilo. A. A. Alberto Pimentel. «A actriz era ‘Emília Adelaide’, que, durante um largo período de tempo, no teatro de D. Maria, ceifou louros, estonteou corações e viu passar pela ante-sala do seu camarim, almofadada de damasco amarelo, uma longa geração de férvidos admiradores»

Ernerto Biester
jdact

Um suposto enigma
«Em 1860, na Revista Contemporânea de Portugal e Brasil, foi publicada, sob o título Martyrios obscuros, uma sentimental história de amor infeliz, cuja assinatura se velava no segredo destas duas letras: A. A.
O facto de a Revista Contemporânea, que nesse tempo era o mais cotado órgão das letras portuguesas, uma espécie de olimpo para escritores consagrados, ter recebido a colaboração da pessoa a quem aquelas duas iniciais mascaravam, já de per si mesmo dizia que essa pessoa dispunha de méritos próprios e ainda de poderosas recomendações para entrar no cenáculo dos plumitivos selectos. O director da Revista, Ernesto Bíester, desdenhando, ao contrário de seus irmãos, o comércio e as finanças, tinha-se lançado na carreira literária, especialmente na teatral, onde correu todas as aventuras inerentes à profissão de autor dramático. Bíester não era um estilista nem um erudito, faltava-lhe espírito agudo, ilustração extensa, vocabulário variado, mas tinha alguma educação artística, era trabalhador fecundo e conhecia, em relação ao seu tempo, o processo de construir peças interessantes.
Numa palavra, o teatro tornou-se-lhe mais familiar do que qualquer outra espécie de literatura. Faz-lhe pendant em França Theodóro Barrière, que durante trinta anos monopolizou o teatro, quase sempre com aplauso e bons lucros, mas que nunca foi além de un bon charpentier. O repertório de Bíester, como o de Barrière, passou, esqueceu, viveu apenas a vida efémera de uma época.
A má língua insinuava que Mendes Leal, cunhado de Bíester, lhe delineava e corrigia as peças: isto carecia absolutamente de fundamento. Eu conheci Ernesto Bíester já decadente em anos e dinheiro: magro, alto, com umas suissas grisalhas, de corte inglês, falando pouco, fumando muito, sempre agarrado voluptuosamente a um grande charuto e a uma grande actriz. A qual actriz era Emília Adelaide, que, durante um largo período de tempo, no teatro de D. Maria, ceifou louros, estonteou corações e viu passar pela ante-sala do seu camarim, almofadada de damasco amarelo, uma longa geração de férvidos admiradores.
Em França, ela teria chegado à opulência. Em Lisboa pôde facilmente dissipar quanto ganhara. Foi ao Brasil, e ficou lá muitos anos. Mas arranjou as coisas de modo que, além de velha, voltou pobre, unicamente amparada pela sua reforma como antiga actriz do Normal.

Emília Adelaide

A nostalgia do palco levou-a a reaparecer na Trindade para recitar a Judia de Tomás Ribeiro. Fui ouvi-la. Pouca gente na sala. Emília Adelaide apresentou-se com uma das suas melhores toilettes de outrora, velha como ela. Na fisionomia os traços mais característicos estavam apagados ou, o que era pior, deformados cruelmente. A voz perdera as inflexões quentes, vibrantes, que foram um dos poderosos recursos teatrais da actriz. A memória falhara-lhe a meio da recitação da Judia, que ela, aliás, tinha dito mil vezes. Os velhos que estávamos presentes aplaudimo-la em respeito ao passado; os novos, poucos seriam, preguntavam irónicos se era aquela a famosa Emília Adelaide e certamente acoimavam de ignara a geração que a tinha aclamado.
Sim, era aquela a famosa Emília Adelaide... noutro tempo. Mas tudo já então estava fora de moda: ela mesma, a sua toilette, a sua dicção, e até, a própria Judia. Dias depois Emília Adelaide pediu-me uma conferência no teatro de D. Maria, onde eu estava condenado a ser comissário do governo. Vi-a chegar, comovida, com o olhar nublado, a voz trémula: que saudade dos seus longínquos triunfos lhe não despertariam aquelas paredes... Significou-me o desejo de representar a Fernanda de Sardou para retomar o seu antigo e brilhantíssimo papel de Clotilde. Compreendi-a, quis auxiliá-la, satisfazer o seu desejo. Mas tive de ceder, amargurado, perante razões económicas, segundo as quais não podia ser obrigada a companhia a ensaiar uma peça de que resultaria um desastre certo.
Ora Ernesto Bíester não se limitou a pôr as nobres páginas da Revista Contemporânea à disposição de A. A. Na crónica literária que ele escrevia em todos os números, fez-lhe um acolhimento elogioso:
  • Agora a revelação. Está nos Martyrios obscuros, e vamos prová-lo. Há mais interesse, mais valia do que pensam, naquele romance tão singelo e tão sentido, que impressiona profundamente e comove deveras. Haviam de reparar que está modestamente firmado por duas iniciais. E não as adivinharam, íamos apostar. Nem é fácil, pelo que valem e pelo que escondem. Valem um grande talento e escondem uma senhora! Mas, o nome? dirá o leitor. Esse é segredo, segredo que já o elegante folhetinista da Revolução de Setembro guardou, e que o cronista da Revista Contemporânea, também guarda. Bons modelos e bons exemplos seguem-se sempre. Ambos mereceram igual e inteira confidência; um há-de ser tão digno dela como o outro foi. Tenham paciência os leitores em concederem este privilégio ao folhetinista e ao cronista, que é um privilégio do ofício, e desta vez também um privilégio da amizade.
A máscara ainda não caiu de todo: mas está perto disso, porque já ficou reduzida ao loup, à demi-masque, que deixa ver o mento gracioso de um rosto feminino, como nas damas do século XVII, especialmente em Itália».

In Alberto Pimentel, Memórias do Tempo de Camilo, A. A., Companhia Portuguesa Editora, Magalhães e Moniz Editores, Porto, 1913.

Cortesia de M e Moniz/JDACT